Uma coisa bela é uma alegria eterna. Com este verso, celebrado entre os seus versos celebrados, inicia o jovem John Keats o seu romance poético Endymion, a sua obra mais ambiciosa e pessoal, que conta, no encantamento mágico dos seus versos sublimes, a história de um jovem que se apaixona melancolicamente pela beleza impossível da lua.
Esse jovem é John Keats, o eterno apaixonado, o jovem eterno. Nascido em 1795, veio a falecer vinte e cinco anos depois, em 1821, ficando para o mundo como um dos maiores poetas do Romantismo europeu, um dos maiores de todos os tempos.
A geração daqueles que entraram para a história como os poetas românticos ingleses - Wordosworth, Coleridge, Shelley, Byron e Keats - transformou radicalmente a face da arte europeia em finais do século XVIII e inícios de século XIX. Foi um período áureo em vários ramos da criação, e se Wordsworth, o seu grande predecessor, foi ainda contemporâneo de Mozart, Keats nasceu depois e morreu antes de Beethoven (1770-1827). Tal como o grande mestre de Bona, sonhavam ingenuamente os românticos ingleses com um Homem novo, mais puro, mais livre. Livre das amarras das superstições que atavam o espírito à religião, livres das grilhetas sociais que amordaçavam todas as ânsias e todos os desejos ao triunfo na luta pela conquista do pão, pela sobrevivência. As Revoluções Americana e Francesa lançavam no espírito ardente dos jovens intelectuais de então a promessa de uma liberdade mais fraterna e maior, de uma igualdade mais humana. O desejo de mudar o mundo era frequentemente acompanhado pela genuína crença na possibilidade de o fazer. E o mundo estava de facto a mudar, com todas as consciências jovens e activas, todas as inteligências sensiveís sentindo que deviam conduzir eles próprios, a seu modo, a mudança. Lord Byron morreu na luta pela independência de Grécia contra o opressor Otomano. Beethoven dedicou iludidamente a sua Sinfonia Heróica ao jovem general Bonaparte, julgando ver no futuro tirano o grande apóstolo da Liberdade nova de um mundo novo. Não interessa aqui discutir de que modo provou o tempo serem certos ou errados alguns dos ideais que estes jovens perfilhavam, das esperanças que acalentavam, dos hinos que bradavam. O que interessa é que os perfilhavam, as acalentavam, os bradavam. Com toda a ânsia genuína das suas almas. Era esse o zeitgeist. E que belo, entusiasmante, novo e rico de possibilidades devem tê-lo então sentido.
Mas Keats não era Byron. Ele é o único dos grandes poetas românticos ingleses que se dedicou apenas à poesia, o único cuja crença primária eram apenas Arte e na Beleza. O único que é lembrado não só como grande poeta, mas também como imortal teórico da poesia, anotando na sua correspondência displicentemente o seu contributo tão original e tão raro, em missivas dirigida a familiares ou amigos. O resultado é ter-se tornado o epistolário de Keats num indispensável clássico sobre estética poética no universo académico e cultural anglo-saxónico.
Beauty is truth, truth beauty,- that is all. Beleza e Verdade. Escreveu-o na Ode a Uma Urna Grega. Era tudo o que importava para Keats. Defendeu a autonomia da arte em relação à moral e a da verdade em relação à razão. Porque, para chegar à Verdade, o homem precisa apenas dos dois instrumentos mais importantes que Beleza lhe oferece: a sensação e a imaginação.
Não consigo exagerar a importância que estes conceitos tiveram para mim desde a primeira vez que os li, o choque da sua novidade e o modo como ficaram para sempre comigo. A imaginação como uma forma de verdade. A sensação como um seu instrumento. A contemplação como um prazer em si mesmo, que não se esgota com a posse do objecto. Uma pessoa pode, como em tudo, ler isto de várias maneiras. Pode achar enfadonho, pode achar piada, pode até perceber e simpatizar. E depois pode ler, mesmo ler a sério, reflectir, interiorizar, deixar a marinar na alma. Depois disso a nossa vida muda. É uma epifania, uma revelação. É a descoberta do valor da emoção pela emoção, da meditação e da poesia.
Reflectindo sobre tudo isto, apercebi-me mais tarde que é a imaginação que distingue o Homem dos animais. É a capacidade de usufruir conscientemente das suas sensações e de meditar sobre elas que nos torna especiais. Não são as faculdades de nos organizarmos, de trabalharmos em conjunto, de cooperarmos, até de comunicarmos ou de vivermos em sociedade. Isso são os meios indispensáveis para vivermos, que devem o melhor possível ordenados, para serem depois o mais rapidamente possível esquecidos. São os meios, não o fim. Também as abelhas, as formigas e os pássaros se organizam em sociedade e têm códigos e instintos de actuação para situações específicas. Também os leões têm hierarquias e os elefantes uma espécie de noção de comunidade. O que distingue o Homem é o ser sozinho, ou o também poder ser sozinho. O poder ver a lua no céu à noite e perceber, de si para si, sentindo, imaginando e meditando, que assiste a uma coisa bela. É o ter consciência desse sentimento, o saber nomeá-lo. Para mim isto é pelo menos parte da verdade, pelo menos parte da razão por que estamos cá. Para sentir o mais possível, o melhor possível. Para aprendermos desse modo a saber as coisas por dentro, em nós, e não apenas a sabermos o que são ou para que servem. É para abrimos os olhos e aprendermos, não tanto a ver, mas a olhar. Porque o que se vê, é sempre o mesmo. O que muda não é o objecto, o que importa não é o objecto. É que só se aprende a ver quando se aprende a olhar. É o olhar que importa.
Repito as lições de Keats: a imaginação como uma forma de verdade, a sensação como um seu instrumento, a contemplação como um prazer em si mesmo, que não se esgota com a posse do objecto.
Repito as lições de Keats: a imaginação como uma forma de verdade, a sensação como um seu instrumento, a contemplação como um prazer em si mesmo, que não se esgota com a posse do objecto.
Porque Keats percebeu o que Pessoa nunca conseguiu: que o Homem não pode decifrar o mistério. O Homem habitará sempre em, viverá sempre com, e finalmente morrerá sempre na presença da Dúvida, a eterna dúvida, a tormentosa dúvida. Ninguém sabe porque estamos aqui, de onde viemos, para onde vamos. Ninguém. O mistério é indecifrável. O que Keats nos ensina - e é tão incalculavelmente precioso, tão transcendentalmente importante que o saibamos - é a perguntarmo-nos isto: Porque te inquietas e preocupas? Porque tens dúvidas e incertezas? Porque tens de querer saber? Porque tens de querer explicar? Será que não vês a beleza disto tudo, o romantismo do mistério, a atração do insondável? Imagina, sente e contempla a beleza disto tudo tal e qual como é, sem explicações, sem sofrimento. Aprende a aceitar o mistério, a viver com ele, a regozijar-te nele: toda a verdade do mundo está nisto e encontrarás nas tuas sensações mais verdade que em todas as ciências.
Keats deu um nome a esta capacidade do Homem para aceitar a dúvida e a incerteza: Negative Capability, a Capacidade Negativa. Capacidade de não buscar para tudo a explicação dos factos e da razão, ou muito simplesmente, de não buscar para tudo uma explicação.
Quando morreu tuberculoso, novíssimo, pobre, sonhador, Keats era apenas um poeta reconhecido entre os seus amigos próximos e uma franja minoritária de intelectuais ingleses. Ao longo do tempo, à medida que os seus originais dispersos e a sua obra epistolográfica se foram tornando conhecidas, a sua reputação foi crescendo. Todo o movimento oitocentista finiessecular da arte pela arte - o esteticismo - viu nele o seu santo patrono, o seu mártir sagrado. Oscar Wilde adorava-o acima de qualquer outro poeta, à excepção talvez de Shakespeare. Para todos os poetas que escrevem em lingua inglesa John Keats é sinónimo de Romantismo, e o seu nome está provavelmente elevado acima de qualquer outro desse período de grandes entre os grandes poetas. A sua poesia é sinónimo de Beleza, a sua vida de Verdade. Viveu e morreu pela causa da poesia. Hoje é imortal.
After dark vapours have opressed our plains
After dark vapours have opressed our plains
For a long, dreary season, comes a day
Born of the gentle South, and clears away
From the sick heavens all unseemly stains.
The anxious mounth, relieving from its pains,
Takes as a long-lost right the feel of May,
The eyelids with the passing coolness play,
Like rose leaves with the drip of summer rains.
And calmest thoughts come round us - as of leaves
Budding - fruit ripening in stillness - autumn suns
Smiling at eve upon the quiet sheaves -
Sweet Sappho's cheek - a sleeping infant's breath -
The gradual sand that through an hour- glass runs-
A woodland rivulet - a Poet's death.
Depois que negras nuvens oprimiram nossos prados
Depois que negras nuvens oprimiram nossos prados
Durante uma longa, uma seca estação, um dia chega
Nascido do sul gentil, e que p'ra longe leva
Dos céus adoentados, todos os resíduos indesejados.
Aliviado de tormentos, desponta o mês feliz
No sentimento de Maio, como num direito esquecido,
E na brisa que passa vão as pestanas brincando,
Como botões de rosa com as gotas de chuvas veranis.
E benignos pensamentos nos acercam - como folhas
Germinando - frutos em silêncio amadurecendo- sóis
Outonais sorrindo de véspera para faunas tranquilas-
De Safo a doce bochecha - um bebé que dorme nos lençóis -
A areia que corre, deslizando a passo na ampulheta-
Um rio por entre a selva, a morte de um Poeta.
Pretendo escrever em breve um pouco mais sobre Keats, ou pelo menos traduzir algumas das suas cartas e alguns dos seus poemas, tal como fiz com este poema, o meu soneto de Keats preferido. Espero ter captado o interesse dos meus leitores para os artigos que se seguem. A imagem deste artigo é da mascára mortuária do poeta, realizada pouco tempo depois da sua morte, no dia 23 de Fevereiro de 1821, distante de nós 189 anos daqui a cerca de um mês.
Sem comentários:
Enviar um comentário