Imagem: Orquestra da Ópera, Edgar Degas, 1870


«O valor da arte, como o da Via Mística, está nos seus efeitos. Se apenas dá prazer, por mais espiritual que o prazer seja, isso não tem grandes consequências, pelo menos maiores consequências que uma dúzia de ostras e uma garrafa de Montrachet. Se é uma consolação, ainda está bem; o Mundo está cheio de males inevitáveis e é bom que o homem disponha de algum retiro onde possa isolar-se de vez em quando; mas não para escapar-lhes, e antes para reunir novas forças a fim de os enfrentar. Porque a arte, se tem de ser considerada como um dos grandes valores da vida, deve ensinar aos homens humildade, tolerância, sabedoria e magnanimidade. O valor da arte não é a beleza, mas a acção justa.»


«Exame de Consciência», William Somerset Maugham.


domingo, 17 de janeiro de 2010

A Arte Matemática de Prokofiev


   Não posso começar a escrever este artigo sem declarar previamente que não sou um grande conhecedor, nem (talvez por isso mesmo) um grande admirador de Prokofiev.
    Estou certo de que um dia poderei vir a mudar de opinião, e muito provavelmente fá-lo-ei. Admiro porém, incondicionalmente, a mestria da sua Sinfonia Clássica, essa pérola em que pretendeu homenagear Haydn e Mozart e o espírito sinfónico da escola vienense, compondo com sucesso uma sinfonia aos estilo classissita mas com a linguagem dos tempos modernos. Mas, acrescentando a esta obra a celebérrima Dança dos Cavaleiros do seu não menos célebre bailado Romeu e Julieta, e algumas passagens mais populares de obras tão inevitáveis como Pedro e o Lobo, pouco mais da sua obra até há bem pouco tempo conhecia.
    De entre os grandes compositores russos do século XX, aquele que indubitavelmente leva a minha preferência é o imortal Rachmaninov, cujos quatro concerto para piano se contam entre as obra-primas mais inspiradas, poderosos e arrebatadoras alguma vez escritas, seguido do espantoso Shostakovitch, um génio ainda muito mal conhecido e apreciado. Ao contrário de Prokofiev, a música de Rachmaninov foi sempre alvo de uma peculiar "maldição" que aflige alguns dos grandes compositores de sempre. É uma estranha maleita, e o facto é que eu sou um fervoroso incondicional da grande maioria dos compositores a quem essa temível "maldição" ataca. Alguns deles são, quanto a mim, muito simplesmente dos maiores artistas que jamais viveram.
    Tomemos por exemplo o caso russo. Pensenmos em três mestres, três mestres cuja obra e reputação se encontram "manchadas" com a inanidade dessa estranha maleita: o extraordinário Rimsky-Korsakov, o sublime Tchaikovsky e, como ficou dito, o arrebatador Rachmaninov. A maldição? O facto de serem populares, de expressarem emoções demasiado fortes e de comporem - notem bem! - «melodias que ficam no ouvido» (a frase é de um crítico que a, com este exemplo, pretendia provar irrefutavelmente a qualidade musical pobre das áreas de Verdi)! Sem dúvida que esta estranha acusação cuspida por críticos cuja vocação deve estar mais relacionada com a mecânica, a agricultura, a contabilidade ou qualquer outra actividade igualmente tediosa e desinspirada, não deixa de ser, no mínimo, absurda. Mas, para grande parte da crítica, pegou mesmo. E, para alguma parte do público, ainda hoje se mantêm. Passo a cunhar esta  perturbação mental  de Síndroma de Verdi, pois o grande compositor italiano (que, só por curiosidade, também era agricultor) é indubitavelmente culpado de, ao longo de vários anos  e em várias obras que duram ainda há mais anos, cometer com acentuada reincidência o crime infame e notório de compor músicas que todos podem assobiar.
    É curioso também notar que a sensibilidade estética destes iluminados nunca se ofendeu grandemente com as demências experienciais que marcaram grande parte do movimento modernista da música dita erudita dos anos 50 do século passado. Entre estas verdadeiras obras-mestras da história da música, que certamente irão permanecer como um legado de excelência e admiração para gerações de melómanos, contam-se a realização de recitais com todo o tipo de entulho colocado sobre as cordas do piano (entre rebuçados e parafusos) para "modernizar" o som; a encenação de concertos em que os instrumentistas "tocavam experimentalmente" no instumento da orquestra que pior dominavam e, para Evereste da degenerescência e charlatanice, a "composição" de uma obra de quatro minutos e trinta e três segundos de puro... silêncio! A proeza é de um tal John Cage, americano de nascimento, palerma de temperamento. E o como reagiram esses exigentes críticos a estes prodígios da arte? Com loas, encorajamento e aplausos. O público é que era imbecil por não gostar de ouvir ruídos de rubuçados e parafusos, ou simplesmente por não gostar de ouvir apenas ruídos! Ou apenas silêncio! O público, essa besta, que tem a audácia de ir para um concerto com a expectativa burguesa de ouvir instrumentistas especializados a actuar nos instrumentos da sua formação! O público, essa súcia de filitinos, com a perpétua arrogância de ir a um concerto para ouvir música! O público, essa manada, que prefere uma simples e bela melodia a um complexo e sofisticado silêncio !
      
    Korsakov, Tchaikovsky e Rachmaninov, foram sem dúvida, entre muitas outras coisas, grandes melodistas.
    Prokofiev nem por isso. Mas tal não significa que a sua música seja marcada pela privilégio da anarquia sobre a ordem ou pela exaltação do silêncio sobre a melodia. Naturalmente nenhum compositor sério defende este tipo de preposições, e Prokofiev é um grande compositor. Um anti-romântico de vocação, de hábitos um conservador (falamos, convém lembrar, na época de uma ditadura comunista), nunca foi um melodista nato. Não porque não soubesse compor melodias generosas, frases belas, passagens encantadoras (provou o contrário em inúmeras obras), mas porque preferiu, por determinação teórica, por decisão estética consciente, não fazê-lo. E isto já merece todo o meu respeito e todo o meu interesse. Entende a música, não à maneira romântica wordsworthiana de «expressão de sentimentos poderosos», mas à maneira neo-hansliquiana de uma sucessão abstrata de sons. Edward Hanslick foi um famoso crítico vienense do século XIX cuja definição da música como "forma em movimento" se impôs ao longo do tempo como uma interessante e válida contribuição teórica. A música de Prokofiev é, quanto a mim, a demonstração mais perfeita que conheço desse enunciado (o que só atesta que, embora ponderosa, essa definição é manifestamente incompleta). A sua estrutura e contornos assentam por completo na convicção de que uma combinação de sequências abstratas de notas (melodias) são auto-significantes, isto é, que nada mais significam ou expressam para além de si próprias. Para Prokofiev um dó é só um dó, e dizer que uma sua composição possa expressar tristeza, melancolia ou alegria é tão fora de contexto como dizer que podemos admirar a beleza de uma equação matemática ou encontrar qualquer emoção estética numa jogada de xadrez.
    Mas precisamente porque uma combinação matemática pode ter (para quem a entenda) beleza, porque uma jogada de xadrez pode ser esteticamente emocionante e porque "a forma em movimento" é capaz não só de mover como de comover (isto é, de despertar uma identificação empática cujo sentimento é eminentemente de ordem estética), que vos convido a ouvir o seu concerto para piano e orquestra n.º. 3 em Dó maior, opus 26.
    Trata-se de uma obra em que está claramente presente essa noção matemática, anti-emotiva, anti-significante da arte musical. Esta deveria ser idealmente encarada, simplesmente, como um jogo de sons, uma combinação de elementos isolados, uma construção de padrões abstratos de forma. Mas, para lá do papel quadriculado dessas equações e do impessoal edifício dessa abstrata arquitectura formal, por vezes escondida, outras vezes à vista, sempre em movimento e sempre presente, está a tirania da beleza. A vibração inefável mas certa das acústicas no ar, geradoras de um co-movimento, uma comoção, uma transmissão física de alguma coisa entre quem toca e quem ouve, essa ciência com que a tirania da beleza, essa velha matrona, sem a qual nenhum artista, conscientemente ou inconscientemente, produz grande Arte, seduz ao longo de séculos os públicos. Mesmo aqueles dão consigo a assobiar displicentemente, com satisfação e com gosto, no mundo das emoções fortes, a harmoniosa melodia das áreas de Verdi ou dos bailados de Tchaikovsky.

Proponho-vos que ouçam as seguintes obras e interpretações:

- Do Concerto para para piano e orquestra n.º. 3 em Dó maior, opus 26:

1. Marta Argerich: interpretação sólida e enérgica. Um sopro de vitalidade e energia a colorir a neutralidade formalista da obra.

2. Serguei Prokofiev, o próprio!!! (mais uma pérola inestimável do youtube!): necessariamente uma  interpretação clássica.  É porém interessante constatar que não é tida como a referência indisputada, ou pelo menos, não o é acima de todas as outras (com os concertos para piano de Rachmaninov o caso é bastante mais flagrante, uma vez que é universalmente pacífico que o compositor era um intérprete não muito inspirado das suas próprias obras!).

3. Vladimir Ashkenazy: é um intérprete de repertório de pendor indiscutivelmente romântico. Mas o seu brilhantismo e virtuosismo maduro impõem-se com grande mestria sobre qualquer desafio. Uma interpretação muito "musical" (o contexto do artigo ilumina o aparente absurdo desta última frase).

- Sinfonia Clássica;

- Dança dos Cavaleiros.

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