Imagem: Orquestra da Ópera, Edgar Degas, 1870


«O valor da arte, como o da Via Mística, está nos seus efeitos. Se apenas dá prazer, por mais espiritual que o prazer seja, isso não tem grandes consequências, pelo menos maiores consequências que uma dúzia de ostras e uma garrafa de Montrachet. Se é uma consolação, ainda está bem; o Mundo está cheio de males inevitáveis e é bom que o homem disponha de algum retiro onde possa isolar-se de vez em quando; mas não para escapar-lhes, e antes para reunir novas forças a fim de os enfrentar. Porque a arte, se tem de ser considerada como um dos grandes valores da vida, deve ensinar aos homens humildade, tolerância, sabedoria e magnanimidade. O valor da arte não é a beleza, mas a acção justa.»


«Exame de Consciência», William Somerset Maugham.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Delírios Alegres


    Manuel Alegre, essa portuguesa mistura entre D. Quixote, o Gigante Adamastor, o Pai Natal e o Homem do Bussaco (hum... um bocado rebuscado, mas vou deixar ficar; ver O Programa do Aleixo), tem-se ultimamente esforçado, com assinalável sucesso, por fazer juz ao cognome por que todos nós o conhecemos. Está, de facto, cada vez mais pateta e cada vez mais triste, apesar de se alegrar com essa tristeza.
    A tentação mais imediata de compará-lo com D. Quixote, "o cavaleiro da triste figura", à qual, como podem comprovar, não consegui resistir, é, na verdade, sumamente injusta. Para o Don, claro está. E falo a sério. Dizer de alguém que é "quixotesco" significa na prática da linguagem socialmente adoptada passar-lhe um atestado de estupidez ou insanidade. É o último argumento quando se trata de arrasar as potencialidades de um estadista ou aspirante a estadista, e, se o símile for particularmente bem conseguido e se se aplicar de modo incisivo e certeiro à pessoa a quem é dirigido, o seu efeito sobre a opinião pública pode ser devastador e até definitivo, isto é, definitivamente fatal. Mas eu não me conformo, não me posso conformar, com o viciado uso em que caiu essa palavra. Considero que o apodo de "quixotesco" pode muito bem ser um belo elogio, e vejo mesmo na figura do cavaleiro galgando em aventuras e sonhos as estéreis planícies de Espanha, acompanhado apenas da sua pobre pileca e do seu escudeiro fiel, algo de eminentemente sagrado.
    D. Quixote é nobre, orgulhoso, caridoso, bom. Busca com toda a ingenuidade da sua alma um padrão de justiça mais elevado e um qualquer sentido de transcendência num mundo despido de significação divina e abandonado a uma materialidade bestializante. Não estando disposto a aceitar a realidade do mundo em que vive, D. Quixote é, muito simplesmente, alguém que ousou sonhar novos mundos, para ser no final, inevitavelmente derrotado por este. Porém, de um modo singular, nunca o foi inteiramente, pois o mero facto de sonhar, de pretender reavivar na sua época descarnada e sem-história o ideal melancólico da cavalaria andante, tornou-o num símbolo, o símbolo de todos aqueles que buscam um qualquer ideal melancólico, para além de todas as épocas descarnadas e sem-história.

    Mas Alegre não é um sonhador, não é um heróico lutador das causas da justiça e da bondade, o ingénuo adepto de um mundo melhor, cujo erro trágico, como em Quixote, seja o de acreditar em demansia na ficção que criou, enredando-se nela a ponto de não ser capaz de a discernir da realidade real (desculpem-me o pleonasmo, mas preciso do tom enérgico) do mundo em que vive. Não, nada disso. Manuel Alegre é apenas um vulgar charlatão, um pavão emplumado, um enorme presumido, um vaidoso perigoso que coloca, acima de todo e qualquer valor, acima de todo e qualquer ideal, a desmesura triste da sua ambição triste. Coloca-a até acima do sentido de ridículo, que manifestamente não possui.
    A imagem que o define correctamente é a de Narciso, não a do Quixote. Apaixonado apenas por si próprio e, mais do que tudo, pela imagem de si próprio, trabalha com afinco e de modo hábil a sua pose, de modo a alimentar conscientemente o lado bom do mito quixotesco, que as pessoas sentem, apesar de não verbalizarem. Tudo o que Alegre deseja é apenas e tão só projetar-se, glorificar-se, cumprir-se de acordo com essa imagem que de si próprio constrói: a da um novo salvador, um novo messias, em suma, a de um Salzar da esquerda portuguesa, órfã de um tonitruante e tacanho paladino. Mas um Salazar ao contrário, obcecado não com as contas públicas (tudo menos isso!), mas com a tirania dos valores humanistas: portuguesas e portugueses, sejam humanistas pobres, mas honrados! Manuel Alegre não se candidata à Presidência da República para projetar, trazer glória ou cumprir um ideal que considere superior. O ideal é ele próprio. É, como Narciso, cego a tudo o que não ele mesmo, e não creio incorrer em grande risco de erro ao aventar a plausível hipótese de que, como Narciso, se afogará com o encantamento do seu reflexo. Todo aqule inchaço ideológico e moral é  um balão cheio de ar. Um alfinete de realismo, competência e seriedade... e aquilo rebenta.
    Como não possui quaisquer competências específicas que o distingam para o cargo que pretende ocupar, e, mais do que isso, sabe-o melhor que ninguém, dedica-se alegremente a delirar novas prioridades nacionais. Porque ele não está cá para servir o país, o país é que está cá para o servir a ele. A ele, o poeta, o profeta, o incorruptível e o puro. O agregador dos valores da esquerda. O único Homem em todo o Portugal, em toda a Península Asiática que é a Europa, em todo o largo perímetro do vasto Mundo que se preocupa com as causas da justiça e com a opressão dos valores do humanismo e solidariedade, vergados sob o peso mesquinho das obcessões do déficit e das estreitezas tecnocráticas. É a velha máxima dos bárbaros que o poeta retoma em pleno século XXI: o que não compreendes, destrói.
    Porque, ao contrário do "tecnocrata", do obcecado, do estreiro, do inculto, do filisteu que é aquela besta do Cavaco (hum... filisteu ainda vá...), que Alegre tem a fineza de atacar sem nomear, o tonitruante bardo não suja as suas alvas mãos de esfinge na imunda discussão sobre dinheiro, essa coisa porca, inventada exclusivamente para a distração dos homens menores.
    Para Alegre, o déficit não é um problema, o país não está endividado, não há desemprego em Portugal, as contas públicas estão todas em ordem, as nossas empresas funcionam e produzem às mil maravilhas, as empresas estranjeiras funcionam e produzem cá que é um fartote e a nossa balança de pagamentos não podia estar melhor. Tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis.
    Para Alegre, tudo vai bem quando a base da economia de um país é o funcionalismo público que as pessoas pagam mais de quarenta por cento de imposto sobre o rendimento para manter. Um país em que o poder de compra e o nível médio de vida descem todos os dias.  Nada de economias, os problemas são outros.
    Basta apenas, à maneira da avestruz, enfiar a cabeça num buraco na areia, que as coisas resolvem-se por si. Basta apenas, à maneira dos cineastas portugueses, pedir subsídios, que os filmes fazem-se sozinhos... desde que não tenham imagens... para a canalha que paga impostos e subsidia a malta, já bem basta um ecrã preto. Tudo vai assim muito bem para Alegre, ele que não é um limitado, um tecnocrata, um escravo do déficit. Ele que preza o humanismo e os valores humanistas. Para ele, o grande Homem, o grande visionário, o problema é fácil de ver, fácil de resolver: faltam valores humanistas, venham daí mais valores humanistas!
    Com valores humanistas vamos todos lá rapaziada, não precisam de estudar mais, de suar mais, de poupar mais... basta um pouco de lamechice, uma pose altiva, uma voz das profundezas do Bussaco, uma retórica pedante, umas tiradas ocas, uns jantares com os esquerdalhos que citam expressões francesas e dirigem cinematecas, e pronto... o Belmiro, esse labrego, pode ir dinamizar empresas e criar empregos para o Brasil, que nós não precisamos cá disso. Nós não vergamos o poético espinhaço ao fascismo da economia, nunca vergaremos o espinhaço a qualquer norma ou lei racional. Nós vergamos apenas o nosso esquerdalho espinhaço ao camarada Alegre e aos seus valores humanistas.
    Compreendo. E não estranho. Para o camarada Alegre, que nunca produziu nada, a não ser meia dúzia de discursos empolados e versos de uma vacuidade assustadora, estas coisas não importam.
    James Madison escreveu nos Federalist Papers que se os homens fossem anjos não haveria necessidade de governo. E que, portanto, num mundo perfeito, um governo perfeito seria muito simplesmente aquele que não existisse. Imaginemos por um momento que amanhã, por capricho divino, os homens se tranformavam em anjos e que o governo, por desnecessário, desaparecia.
    Observemos e comparemos dois casos distintos e perguntemos: o que fariam então o tecnocrata e o Narciso? Imagino que o primeiro regressa calmamente à sua vida profissional, onde é reconhecidamente competente e benquisto, e leva uma vida confortável e próspera, muito justamente gozando de uma boa-reputação generalizada e de uma estabilidade financeira que atestam a natureza do seu mérito, aplicação, inteligência e esforço, e surjem como um fruto natural destas qualidades. E o que faria o nosso conscencioso versejador? Ensinar literatura numa Universidade, num liceu? Mas quem será o iludido português ou portuguesa que, em boa consciência, genuinamente acredite que o homem pode soltar, ainda que muito espremido, um pingo de boa literatura ou de boa teoria literária? Digam-se quem é essa portuguesa ou português, que eu comprometo-me, pessoalmente e de bom grado, a costear à infeliz criatura os encargos da instrução primária. Ainda assim, é bem possível que, de entre a trupe de intelectuais que vai parasitando à sua volta, algum dos seus amigos politiqueiros lhe arranje um tacho numa editora ou numa faculdade (pública, é claro!). O amigalhaços, afinal, são para isto mesmo. Mas, e se os amigalhaços todos estiverem sem tachos na cozinha? Onde é que o nosso bardo passar a fazer os seus pantagruélicos cozidos à portuguesa ou os seus bacalhaus à brás de raça pura, importados directamente da Noruega? Na fornalha dos seus versos, passando a ganhar o pão com os seus poemas? E quem será essoutro iludido português ou portuguesa que, em boa consciência, genuinamente acredite que o homem é, na plena acepção da palavra, um poeta, e não um versejador enfatuado e menor? Temo bem que, a haver um assim tão trágico concidadão pátrio... bem, para esse toda a esperança é vã, já está para lá de toda e qualquer possibilidade de redenção, e o nosso dever é lamentá-lo. Mas se assim fosse, se o "poeta" tivesse de ganhar o pão os seus versos, creio que não lhe prestaria um mau serviço quem o iniciasse nos segredos e subtilezas do marisco do Eusébio, essa pérola dos verdadeiros poetas, que sempre sai mais em conta.
    Em qualquer dos casos seria bem interessante imaginar então o grande Homem, o grilo falante da consciência portuguesa, aquele que não mancha a sua alma impoluta com as baixezas do deficit e outras que tais, recostado numa cadeira de balouço num recanto escondido da sua isbá, agachado e encolhido sobre uma modesta secretária de madeira, de pantufa felpeluda e gorro à pai natal; nos olhos espantados, esbugalhados e palermas a incredulidade humilhante de estar lendo, derrotado, à luz das velas gastas (a eletricidade anda cara ...), uma sebenta reles de lições reles da ciência reles da economia. Para ver se aprende, com os mentecaptos da tecnocracia, a gerir melhor o pataco, essa coisa reles... quando é dos outros!
    É que, como ensina Milton Friedman (outro tecnocrata monomaníaco e limitado), há quatro maneiras muito distintas de gastar o pataco:
1) Gastar o pataco próprio consigo próprio: importa quanto gastamos e como gastamos. Economiza-se e valoriza-se o pataco.
«Assim tá bem, mas vou contar tostões... e vou esmifrar esta porcaria... a mim ninguém me engana! Não me apanham em burlas e engodos! Vou gastar bem o meu pataco, tudo do bom e do melhor, mas o mais barato possível, claro!»
2) Gastar o pataco próprio com outras pessoas: importa quanto gastamos mas não como gastamos. Economiza-se, mas não se valoriza o pataco.
«Epá, tenho mesmo de comprar um presente ao Luís Tinoco, que o gajo faz anos. É um frete do caraças, mas tem mesmo de ser! Mas um gajo não é parvo. Um gajo escolhe aí uma merda barata qualquer, mas que tenha bom aspeto, e tá safo, ninguém nota!... Ainda por cima o cabrão nem sequer foi aos meus anos, disse que tava doente e não-sei-quê, e depois nem me deu nada... Filho da puta! Levo-lhe aqui esta porcaria e já vai com muita sorte.»
3) Gastar o pataco de outras pessoas em si próprio: não importa quanto gastamos mas sim como gastamos. Não se economiza, mas valoriza-se o pataco.
«Olha, hoje o patrão oferece aqui o almoço à malta! Cabrão! Esperaí quieu já te fodo... Levas aqui com uma sapateira e um arroz de marisco que até cais pró lado. Palhaço. Vou pedir aí uma vinhaça como deve ser e no fim, ai caraças!, levas na tromba com um uísque tão velho que até te vão cair os tomates! Ca ganda toni pá... o palerma até vai apanhar um enfarte quando vir a conta...»
4) Gastar o pataco de outras pessoas com outras pessoas: não importa quanto gastamos nem como gastamos. Não economizes nem valorizes o pataco, a malta paga os impostos!
    Somos o Pateta Alegre. Em suma, estamo-nos mais é a marimbar pró pataco da malta. A malta que se lixe. A malta tem é de ir votar aqui no Pateta prá presidência e "mai nada". Aqueles tansos lá amiguinhos do Cavaco, que são uns caretas, uns Velhos do Restelo, que preguem o miserabilismo. Comigo é tudo à Lagardère. A malta quer é borga, qual apertar o cinto! Quando se acabar o pataco arranja-se mais. Ou cai das árvores ou aumenta-se os impostos, tanto faz! Ou então manda-se vir da Alemanha, os nazis de merda que paguem esta treta. Entretanto fazemos aí uns estádios novos, todos construídos de raiz pra organizarmos aí um Europeu feminino ou uma merda do género, que é pra promover a igualdade... Quando isto rebentar já a malta tá nas reformas a receber o pataco... e isto depois que se lixe, que há-de aparecer alguém que põe isto tudo na ordem. Entretanto um gajo já mamou e pronto, por mim está tudo bem.»


    Gostava de terminar este post com um conselho para o nosso delirante e risível bardo. Não fale do dinheiro dos outros com desprezo. É o dinheiro dos outros que lhe paga o ordenado. É o dinheiro dos outros que o Estado rouba descaradamente em quase metade do que ganham, para, mais vergonhosamente ainda, contrair dívidas que não pode pagar e que irredimivelmente enlameiam o já quase irrecuperável bom-nome da nossa reputação internacional. O mínimo que pode fazer é estar maximamente calado. Perceber que é sua obrigação mínima, já que é assim que ganha o seu pataco, preocupar-se ao máximo em como gasta o nosso. Que é sua obrigação mínima, já que não sabe como se mexe em pataco, respeitar ao máximo aqueles que sabem, e não, como é seu timbre, ter-lhes inveja. Que é sua obrigação mínima, nem que seja com a humildade que ainda ninguém lhe ensinou que não tem, contribuir ao máximo para que, de futuro, o volume de pataco que sai à força do nosso para o vosso bolso, seja cada vez menor e não cada vez maior. É tirar a cabeça da areia, deixar de viver de reformas e subsídios, é não inventar novos problemas para tentar esconder o facto de que não sabe solucionar os velhos que ainda persistem. É, enfim, seguir o conselho de Madison e tornar-se perfeito, tornando-se... perfeitamente ausente.


Imagem: Milton Friedman, Prémio Nobel da Economia em 1976. O homem que sabe como se mexe em pataco.

Imagem da cima: Narciso, Caravaggio, 1588-89.

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