Peter Paul Rubens, Caritas Romana, 1606
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
Um Adeus a J.D. Salinger (1919-2009)
Acabo de saber da morte, aos 91 anos e ao que parece de causa natural, de Jerome David Salinger (1 de Janeiro de 1919 - 27 de Janeiro de 2009). E proponho-me por isso a escrever de improviso um epitáfio pessoal de um dos escritores mais interessantes, pessoais e originais que já li e também um dos mais significativos da literatura americana de todo o século XX.
Li Salinger pela primeira vez apenas o ano passado, mal sabia eu que nas vésperas da sua morte, e a experiência foi marcante. 2009 foi o meu Ano Salinger, sem dúvida o escritor que mais poderoso que li nos últimos tempos. Comecei pelo Franny and Zooey, continuei com as Nine Stories e acabei com o Catcher in the Rye. Tive, em Franny and Zoey, o indescritível espanto e horror de encontrar a primeira personagem que considero quase igual a mim (ou, pelo menos, para parafrasear Pessoa sobre Bernardo Soares, um "eu" sonolento, isto é, com as faculdades de raciocínio e afectividade diminuídas) - refiro-me a Zooey. Abstenho-me portanto, por imperativo de cavalheiresco decoro, de o descrever, mas não deixo de recomendar a leitura desse livro magistral, bem como, já agora, de todos os outros.
Li Salinger pela primeira vez apenas o ano passado, mal sabia eu que nas vésperas da sua morte, e a experiência foi marcante. 2009 foi o meu Ano Salinger, sem dúvida o escritor que mais poderoso que li nos últimos tempos. Comecei pelo Franny and Zooey, continuei com as Nine Stories e acabei com o Catcher in the Rye. Tive, em Franny and Zoey, o indescritível espanto e horror de encontrar a primeira personagem que considero quase igual a mim (ou, pelo menos, para parafrasear Pessoa sobre Bernardo Soares, um "eu" sonolento, isto é, com as faculdades de raciocínio e afectividade diminuídas) - refiro-me a Zooey. Abstenho-me portanto, por imperativo de cavalheiresco decoro, de o descrever, mas não deixo de recomendar a leitura desse livro magistral, bem como, já agora, de todos os outros.
Um dos grandes méritos de Salinger prende-se, quanto a mim, na ênfase que coloca não na narração de acções dramáticas concretas e tangíveis do mundo exterior que nos cerca e nos comove (uma discussão violenta, uma morte inesperada, um suicídio trágico, um desentendimento amoroso, uma traição imperdoável, um pedido de casamento, etc...), mas na descrição aparente de não-acções: parece que nada se vai passando enquanto vivemos esquizofrenicamente no mundo íntimo das personagens. Não me interpretem mal: há na obra de Salinger (refiro-me, obviamente, apenas ao que li) muita coisa disto tudo, mas tudo se passa de maneira tão interiorizada, subtil; tudo é narrado e descrito com um ritmo e um estilo tão energéticos e que tão vigorosamente entretêm, que de reprente somos confrontados, como se de uma surpresa se tratasse, com uma discussão, uma morte, um suicídio, um desentendimento, etc... E depois apercebemo-nos que caminhámos todo esse percurso lado a lado com a personagem, cumplicemente. Ficamos estarrecidos por não nos termos apercebido do que era tão evidente, do que estava lá à vista de todos, do que aí vinha. Com o facto de o desfecho não poder ser senão aquele, aparentemente tão estranho, e nós leitores, somos dessa forma inaceitavelmente levados a partilhar das personagens o destino, quase como se tivéssemos culpa. Perguntamo-nos como foi possível que não tivéssemos visto, que não nos tenhamos apercebido, de que modo tão ingénuo deixámos que nos conduzissem até ao ponto em que parece impossível que tenhamos chegado e ao qual, no entanto, e sem margem para dúvidas, nos encontramos. E a isto tudo eu respondo: estávamos demasiado entretidos, estávamos a gozar demasiado a coisa, a personagem, a situação; estávamos de tal modo por dentro de tudo que, paradoxalmente, nos alheámos. Distraímo-nos absortamente e tornámo-nos ausentes e fomos andando para a frente sem darmos por isso. Tanto que não pudemos ou não quisémos ver o que aí vinha. Não sei que artes mágicas são estas, mas isto não acontece por acaso. Salinger sabe como brincar com o leitor.
Outro aspecto importante do universo ficcional de Salinger é a irracionalidade aparente dos comportamentos das suas personagens, que desesperariam qualquer déspota totalitário ou arquitecto socialista de organização de padrões sociais e comando de comportamentos. E desse modo esdrúxulo, mas marcante, Salinger deve considerar-se como um ícone da liberdade: da liberdade de acção, de erro, e até de destruição... em suma, liberdade de todos nós para fazermos o que nos der na real gana em relação a nós próprios. Claro que o resultado previsível e frequente dessa premissa é a inevitabilidade de uma auto-destruição, real ou metafórica, de uma perda, de um desenraizamento. Mas há também uma beleza trágica, uma catarse triste, um último recurso nesse extremo de liberdade niilista que é muitas vezes o único caminho para uma reflexão profunda sobre o destino que escolhemos ou que a vida escolheu por nós.
Ora isto pode ser muito mal interpretado: é por exemplo sabido que o assassino de John Lennon (que não vou nomear, respeitando assim o inteligente pedido de Yoko Ono para que a posteridade o não faça, castigando-o desse modo com a negação da notoriedade que visou alcançar com o seu acto infame) tinha The Catcher in the Rye por livro favorito, chegando mesmo a conseguir um autógrafo assinado do autor justamente na manhã em que cometeu o crime. Naturalmente que ao longo do tempo muita gente tem tendado de diversas formas associar causalmente a leitura do livro com esses ímpetos assassinos. Por minha parte, creio que a literatura de Salinger tem tanto a ver com as razões de um assassino quanto o gosto pelo cinema com as de um racista, ou a música clássica com um pedófilo. O mundo está cheio de loucos e depravados e, surpresa das surpresas, sempre esteve. Caim não precisou de ir ao cinema ou de ler Saramago pela pensar em matar alguém, ao contrário, talvez, de muita gente...
O que Salinger mostrava era tão somente que as pessoas não agem como devem, porque ísto ou aquilo é esperado delas ou porque a razão dita que é assim que se faz. Pelo menos não agem sempre assim. Muitas vezes as pessoas agem assim porque assim agem. Não porque devem ou não devem. Mas porque sim. Porque lhes apeteceu, porque lhes pareceu bem. Sem saber porquê. E esta importância dos motivos irracionais ou de razão oculta a raiar o absurdo é um dos traços mais poderosos da arte de Salinger, que a este respeito muito foi beber a Dostoievsky. É também uma das verdades mais pungentes do nosso mundo, cujos dramas interiores espelhou como ninguém. Mas isso não faz de todos nós assassinos. Torna-nos apenas, talvez apenas um pouco menos cegos e certamente muito mais lúcidos em relação ao mundo e a nós mesmos.
Ora isto pode ser muito mal interpretado: é por exemplo sabido que o assassino de John Lennon (que não vou nomear, respeitando assim o inteligente pedido de Yoko Ono para que a posteridade o não faça, castigando-o desse modo com a negação da notoriedade que visou alcançar com o seu acto infame) tinha The Catcher in the Rye por livro favorito, chegando mesmo a conseguir um autógrafo assinado do autor justamente na manhã em que cometeu o crime. Naturalmente que ao longo do tempo muita gente tem tendado de diversas formas associar causalmente a leitura do livro com esses ímpetos assassinos. Por minha parte, creio que a literatura de Salinger tem tanto a ver com as razões de um assassino quanto o gosto pelo cinema com as de um racista, ou a música clássica com um pedófilo. O mundo está cheio de loucos e depravados e, surpresa das surpresas, sempre esteve. Caim não precisou de ir ao cinema ou de ler Saramago pela pensar em matar alguém, ao contrário, talvez, de muita gente...
O que Salinger mostrava era tão somente que as pessoas não agem como devem, porque ísto ou aquilo é esperado delas ou porque a razão dita que é assim que se faz. Pelo menos não agem sempre assim. Muitas vezes as pessoas agem assim porque assim agem. Não porque devem ou não devem. Mas porque sim. Porque lhes apeteceu, porque lhes pareceu bem. Sem saber porquê. E esta importância dos motivos irracionais ou de razão oculta a raiar o absurdo é um dos traços mais poderosos da arte de Salinger, que a este respeito muito foi beber a Dostoievsky. É também uma das verdades mais pungentes do nosso mundo, cujos dramas interiores espelhou como ninguém. Mas isso não faz de todos nós assassinos. Torna-nos apenas, talvez apenas um pouco menos cegos e certamente muito mais lúcidos em relação ao mundo e a nós mesmos.
Salinger foi ainda um mestre consumado do diálogo, que, talvez como nenhum outro escritor em língua inglesa do século XX, contribuiu para modernizar, coloquializando-a com o mais puro e delicioso calão americano. Utilizou esse calão prolificamente e com revolucionário talento e jogou com grande originalidade com a reprodução do diálogo tal como é falado, com todas as nuances quotidianas e as sonoridades peculiares e características do uso descuidado e distraído - que é como as pessoas, todos nós, falamos-, obtendo com isso espetaculares efeitos.
O resultado final é uma galeria de personagens nervosas, complexas, contraditórias, instáveis, monomaníacas e meio-loucas, inquietas e perdidas, em si, no mundo, em parte incerta. Algumas procuram consolo no misticismo, outras na austera renúncia e na misantropia e outras ainda na perdição do turbilhão de um mundo que não compreendem mas que anseiam por experienciar até ao desgaste, ao excesso, à violência do esquecimento de si. E enquanto fazem tudo isto - sempre ansiosas, sempre em busca de um estímulo, de alguma nova sensação, de alguma resposta - lá vão elas dialogando, berrando, praguejando...mas sempre com um engenho, um acerto e um tacto que é um gosto, um triunfo! A gramática não escrita da coloquialidade literária é deleitosamente adulterada, o velho código do embelezamento e da transposição elegante da vida para a arte, destruído e reconstruído. Velhos modismos estilhaçados, superados, obsoletos e novas possibilidades inventadas, aplicadas e ampliadas. E que bem que tudo resulta! Goddam it!
É bem verdade que Salinger já estava, em certo sentido, morto. Artisticamente, isto é. Nada escrevia desde 1965 e parace ter sido durante toda a vida o espelho das complexidades e desrazões que compôs nas suas personagens. Refugiou-se na sua solidão misantrópica e num silêncio de mais de quatro décadas. «Há uma paz maravilhosa quando não se publica. É pacífico.», afirmou numa entrevista telefónica em 1974. O seu refúgio de New Hampshire, mais ou menos ao estilo de Herculano, foi uma renúncia significativa ao apelo das massas e um repúdio dos traços populistas de uma época de ídolos, que Salinger nunca quis ser.
Mas se a sua reclusão mediática pode ter esta leitura, já o seu silêncio criativo foi, à moda de Sibelius, enigmático, mesmo inexplicável. No apogeu das suas faculdades criativas, a sua abrupta retirada de cena, à maneira de Bobby Fischer, teve os laivos de um desgosto, os sabores de uma amargura.
E é por isso também que o dia de hoje é mais triste. Pelo irremediável do silêncio, pela irreversibilidade do momento, pelo irredimível da recusa. A última página da vida Salinger volta-se assim desse modo inesperado e ironicamente trágico, salingeriano, de um romance cujo desenlace longamente aguardado, pressentido, necessário... se perde para sempre na imensidão dos tempos sem tempo, para sempre levado para um outro lado da vida, onde talvez ainda se esteja escrevendo. Como se o escritor ainda nos pudesse de alguma forma dizer, como Zooey à sua irmã Franny, no final de Zooey: «O.K, I'll be right back. Don't move», e nós, como ela espectantes, continuássemos falando, à espera de sermos ouvidos enquanto falamos, ou ouvindo-nos a nós próprios enquanto lemos das personagens que tanto nos dizem algo muito importante e profundo acerca de nós próprios.
Mas o mais sensato é fazermos aqui as nossas despedidas, aceitar o inevitável e fechar este livro com a certeza de uma lição aprendida. Ou será que não? A questão impõe-se: poderá Salinger ainda surpreender-nos, à maneira de Pessoa, com uma arca do tesouro? Será que um dos maiores vultos da literatura americana poderia ficar quarenta anos sem escrever absolutamente nada, num silêncio mortal? Ou será que, na lógica do seu espírito de amor ao recato, tinha apenas uma aversão, que aliás chegou a expressar, à exposição que qualquer publicação necessariamente representa? Será que vamos assistir, na hora da sua morte, ao milgare do seu renascimento?
As especulações são legítimas, mas Salinger já nos ensinou que as esperanças podem ser muito facilmente defraudadas.
Mantemos pois as nossas despedidas tristes e comovidas, mas acrescentamos-lhes uma espécie de desejo, um resquício de esperança. Porque nem sempre agimos como deveríamos ou como seria expectável que agíssemos. Porque sim, porque nos apeteceu, porque nos parece bem. Sem saber porquê. E Salinger também nos ensinou isto.
Mas se a sua reclusão mediática pode ter esta leitura, já o seu silêncio criativo foi, à moda de Sibelius, enigmático, mesmo inexplicável. No apogeu das suas faculdades criativas, a sua abrupta retirada de cena, à maneira de Bobby Fischer, teve os laivos de um desgosto, os sabores de uma amargura.
E é por isso também que o dia de hoje é mais triste. Pelo irremediável do silêncio, pela irreversibilidade do momento, pelo irredimível da recusa. A última página da vida Salinger volta-se assim desse modo inesperado e ironicamente trágico, salingeriano, de um romance cujo desenlace longamente aguardado, pressentido, necessário... se perde para sempre na imensidão dos tempos sem tempo, para sempre levado para um outro lado da vida, onde talvez ainda se esteja escrevendo. Como se o escritor ainda nos pudesse de alguma forma dizer, como Zooey à sua irmã Franny, no final de Zooey: «O.K, I'll be right back. Don't move», e nós, como ela espectantes, continuássemos falando, à espera de sermos ouvidos enquanto falamos, ou ouvindo-nos a nós próprios enquanto lemos das personagens que tanto nos dizem algo muito importante e profundo acerca de nós próprios.
Mas o mais sensato é fazermos aqui as nossas despedidas, aceitar o inevitável e fechar este livro com a certeza de uma lição aprendida. Ou será que não? A questão impõe-se: poderá Salinger ainda surpreender-nos, à maneira de Pessoa, com uma arca do tesouro? Será que um dos maiores vultos da literatura americana poderia ficar quarenta anos sem escrever absolutamente nada, num silêncio mortal? Ou será que, na lógica do seu espírito de amor ao recato, tinha apenas uma aversão, que aliás chegou a expressar, à exposição que qualquer publicação necessariamente representa? Será que vamos assistir, na hora da sua morte, ao milgare do seu renascimento?
As especulações são legítimas, mas Salinger já nos ensinou que as esperanças podem ser muito facilmente defraudadas.
Mantemos pois as nossas despedidas tristes e comovidas, mas acrescentamos-lhes uma espécie de desejo, um resquício de esperança. Porque nem sempre agimos como deveríamos ou como seria expectável que agíssemos. Porque sim, porque nos apeteceu, porque nos parece bem. Sem saber porquê. E Salinger também nos ensinou isto.
Goodbye Mr. Salinger. Hope I'll see ya round.
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
Quem diz que a literatura não é importante?
«É preciso ter cuidado com os livros de medicina: podemos morrer por culpa de uma errata.»
- Mark Twain.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
3 Sonetos de Keats
I.
On First Looking into Chapman's Homer
Much Have I travelled in the realms of gold,
And many goodly states and Kingdoms seen;
Round many western islands have I been
Which bards in fealty to Apolo hold.
Oft of one wide expanse had I been told
That deep-browned Homer ruled at his demesne;
Yet did I never breathe its pure serene
Till I heard Chapman speak out laud and bold.
Then felt I like some watcher of the skies
When a new planet swims into his ken;
Or like stout Cortez when with eagle eyes
He stared at the Pacific, and all his men
Looked at each other with a wild surmise-
Silent, upon a peak in Darien.
Pela Primeira Vez Lendo a Tradução de Chapman de Homero [1ª. versão]
Pelos reinos de oiro já muito viajei,
E muitos belos reinados e estados vi;
Por ilhas ocidentais inúmeras vezes naveguei:
Fidelidade a Apolo guardam os poetas de aí.
Mas muitas vezes uma vasta terra me foi narrada
Em que impera Homero, de fronte profunda;
Porém nunca eu sua serenidade pura encontrara
Até ouvir de Chapman a voz alta e ousada.
Senti-me então como alguém que observa os céus
Quando um novo planeta voa ao seu conhecimento;
Ou como o bravo Cortez quando viu com os olhos seus
Como uma águia, o Pacífico, e por um momento
Todos seus homens de louco espanto se miraram-
Silenciosos em Darien, quando o cume alcançaram.
Pela Primeira Vez Lendo a Tradução de Chapman de Homero [2ª. versão]
Pelos reinos de oiro já muito viajei,
E muitos belos reinados e estados vi;
Por ilhas ocidentais inúmeras vezes naveguei:
Fidelidade a Apolo guardam os poetas de aí.
Mas muitas vezes uma vasta terra me foi narrada
Em que impera Homero, de fronte profunda;
Porém nunca eu sua serenidade pura encontrara
Até ouvir de Chapman a voz alta e ousada.
Senti-me então como alguém que observa os céus
Quando um novo planeta voa ao seu conhecimento;
Ou como o bravo Cortez quando viu com os olhos seus
Como uma águia, o Pacífico, e por um momento
Todos seus homens se miraram espantados-
Sobre um cume em Darien, silenciados.
II.
Bright Star
Bright star! Would I were stedfast as thou art-
Not in lone splendour hung aloft the night
And watching, with eternal lids apart,
Like nature's patient, sleepless eremite,
The moving waters at their priestlike task
Of pure ablution round earth's human shores,
Or gazing on the new soft-fallen mask
Of snow upon the mountains and the moors;
No - yet sill stedfast, still unchangeable,
Pillowed upon my fair love's ripening breast,
To feel for ever its soft fall and swell,
Awake for ever in a sweet unrest,
Still, still to hear her tender-taken breath,
And so live ever - or else swoon to death.
Estrela Cintilante
Estrela Cintilante! Fora eu como tu constante-
E não suspenso em solitário esplendor nocturno
De pálpebras abertas, observando eternamente
Como um paciente da natureza ou eremita sem sono
As movediças águas, em sua missão peregrina
De ablução ao largo das humanas encostas da Terra,
Ou as fofas máscaras de neve mirando de cima,
Recém caídas na montanha ou na charneca;
Não. Mas quedar-me constante, quedar-me imutável,
No seio belo e maduro da minha amada acostado,
Sentindo sua suave inclinação, sua forma agradável,
Numa doce inquietude para sempre acordado,
Escutando-a bem quieto, ternamente a inspirar,
E assim viver para sempre - ou para a morte deslizar.
III.
Why did I laugh to-night?
Why did I laugh to-night? No voice will tell;
No God, no Demon of severe response,
Deigns to reply from Heaven or from Hell.
Then to my human heart I turn at once-
Heart, thou and I are here sad and alone;
Say wherefore did I laugh? Oh, mortal pain!
Oh, darkness, darkness! Ever must I moan,
To question Heaven and Hell and Heart in vain!
Why did I laugh? I know this being's lease
My fancy to its utmost blisses spreads;
Yet could I on this very midnight cease,
And the world's gaudy ensigns see in shreds.
Verse, fame, and beauty are intense indeed,
Buth Death's intenser - Death is Life's high meed.
Porque me ri eu esta noite? [1ª. versão]
Porque me ri eu esta noite? Nenhuma voz o dirá;
Nenhum Deus ou Demónio de resposta severa,
Do Céu ou do Inferno, a replicar-me se dignará.
Para o meu humano Coração então me volto sem demora-
Meu Coração, tristes e sós pr'aqui estamos tu e eu;
Diz-me então porque me ri? Ó agonia mortal!
Ó escuridão, escuridão! Sempre este queixume meu,
Interrogando Céu, Inferno e Coração. Nenhum sinal!
Porque me ri eu? Sei que a libertação deste meu ser
A minha fantasia até ao fundo do seu deleite espande;
Porém poderia eu nesta mesma meia-noite perecer,
E ver do mundo as ofuscantes insígnias rasgadas, distante.
Versos, fama e beleza coisas são de facto intensas.
Mas a Morte é-o mais - é da Vida a maior das recompensas.
Porque me ri eu esta noite? [2ª. versão]
Porque me ri eu esta noite? Nenhuma voz o dirá;
Nenhum Deus ou Demónio de resposta severa,
Do Céu ou do Inferno, a replicar-me se dignará.
Para o meu humano Coração então me volto sem demora-
Meu Coração, tristes e sós pr'aqui estamos tu e eu;
Diz-me então porque me ri? Ó agonia mortal!
Ó escuridão, escuridão! Sempre este queixume meu,
Interrogando Céu, Inferno e Coração. Nenhum sinal!
Porque me ri eu? Sei que a libertação deste meu ser
A minha fantasia até ao fundo do seu deleite espande;
Porém poderia eu nesta mesma meia-noite perecer,
E ver do mundo as ofuscantes insígnias rasgadas, distante.
Versos, fama e beleza intensas coisas são deveras,
Mas a Morte é-o mais - é da Vida a maior das quimeras.
Tradução minha. Como pode o leitor constatar, apresento para o primeiro e último soneto duas versões de tradução possíveis, mudando apenas, em ambos os casos, os dois últimos versos. Na impossibilidade de decidir qual a melhor, e considerando que ambas as versões são, apesar das diferenças, bastante fiéis ao original, deixo ao critério de quem lê a escolha entre a opção que mais lhe agrada.
sábado, 23 de janeiro de 2010
Do não asterisco
Ocioso leitor, compreendo bem a tua indignação. Se a desconsideração do não cumprimento de uma promessa é sempre deplorável, o que dizer quando é perpetrada por um escrevinhador ousado, que arrogantemente se auto-qualifica de "considerativo"? Imperdoável, bem o sei.
Ainda por cima, como uma desgraça nunca vem só, também assim uma afronta. Ou um asterisco. Portanto não te espantes de ver aí em cima especados, indecentes feitos penduricalhos desengonçados, dois românticos asteriscos, no companheirismo enebriado de uma madracisse cúmplice.
Peço a vossa indulgência para esse facto. É que o amor é uma coisa bela: haverá coisa melhor do que estarmos apaixonados, gozando o prazer culpado de nada vermos no mundo senão o objecto da nossa adoração? E se a vida é o espelho da arte, bem posso dizer que a minha vida foi, ao menos neste fim de semana, o espelho sem mácula desses dois asteriscos fraternos e lamechas. Porque o amor é lamechas.
Fui, no intervalo destes dois dias, um pouco menos escrevinhador e um pouco mais feliz. E isso justifica tudo, até uma descortesia.
Mas não se enciumem, nem desesperem: deixem-se ficar aí pendurados, espectantes, pendentes. Tenho por vós a maior das estimas e, confesso, por aquilo que escrevo o mais caloroso dos afectos. Juntemos então essa estima e esse afecto e continuemos criando juntos este blogue bem ameno e agradável, esta nossa pequena isbá, onde espero que nos possamos sentir sempre confortáveis e em casa.
E já agora, enquanto folgam as costas cá deste simpático pau, acorram depressa ao youtube para ouvir as não tão simpáticas escutas do Pinto da Costa, antes que alguém acabe com a festa.
Aqui nos despedimos por ontem e por hoje. Saudações e até à vista.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
A thing of beauty is a joy forever
Uma coisa bela é uma alegria eterna. Com este verso, celebrado entre os seus versos celebrados, inicia o jovem John Keats o seu romance poético Endymion, a sua obra mais ambiciosa e pessoal, que conta, no encantamento mágico dos seus versos sublimes, a história de um jovem que se apaixona melancolicamente pela beleza impossível da lua.
Esse jovem é John Keats, o eterno apaixonado, o jovem eterno. Nascido em 1795, veio a falecer vinte e cinco anos depois, em 1821, ficando para o mundo como um dos maiores poetas do Romantismo europeu, um dos maiores de todos os tempos.
A geração daqueles que entraram para a história como os poetas românticos ingleses - Wordosworth, Coleridge, Shelley, Byron e Keats - transformou radicalmente a face da arte europeia em finais do século XVIII e inícios de século XIX. Foi um período áureo em vários ramos da criação, e se Wordsworth, o seu grande predecessor, foi ainda contemporâneo de Mozart, Keats nasceu depois e morreu antes de Beethoven (1770-1827). Tal como o grande mestre de Bona, sonhavam ingenuamente os românticos ingleses com um Homem novo, mais puro, mais livre. Livre das amarras das superstições que atavam o espírito à religião, livres das grilhetas sociais que amordaçavam todas as ânsias e todos os desejos ao triunfo na luta pela conquista do pão, pela sobrevivência. As Revoluções Americana e Francesa lançavam no espírito ardente dos jovens intelectuais de então a promessa de uma liberdade mais fraterna e maior, de uma igualdade mais humana. O desejo de mudar o mundo era frequentemente acompanhado pela genuína crença na possibilidade de o fazer. E o mundo estava de facto a mudar, com todas as consciências jovens e activas, todas as inteligências sensiveís sentindo que deviam conduzir eles próprios, a seu modo, a mudança. Lord Byron morreu na luta pela independência de Grécia contra o opressor Otomano. Beethoven dedicou iludidamente a sua Sinfonia Heróica ao jovem general Bonaparte, julgando ver no futuro tirano o grande apóstolo da Liberdade nova de um mundo novo. Não interessa aqui discutir de que modo provou o tempo serem certos ou errados alguns dos ideais que estes jovens perfilhavam, das esperanças que acalentavam, dos hinos que bradavam. O que interessa é que os perfilhavam, as acalentavam, os bradavam. Com toda a ânsia genuína das suas almas. Era esse o zeitgeist. E que belo, entusiasmante, novo e rico de possibilidades devem tê-lo então sentido.
Mas Keats não era Byron. Ele é o único dos grandes poetas românticos ingleses que se dedicou apenas à poesia, o único cuja crença primária eram apenas Arte e na Beleza. O único que é lembrado não só como grande poeta, mas também como imortal teórico da poesia, anotando na sua correspondência displicentemente o seu contributo tão original e tão raro, em missivas dirigida a familiares ou amigos. O resultado é ter-se tornado o epistolário de Keats num indispensável clássico sobre estética poética no universo académico e cultural anglo-saxónico.
Beauty is truth, truth beauty,- that is all. Beleza e Verdade. Escreveu-o na Ode a Uma Urna Grega. Era tudo o que importava para Keats. Defendeu a autonomia da arte em relação à moral e a da verdade em relação à razão. Porque, para chegar à Verdade, o homem precisa apenas dos dois instrumentos mais importantes que Beleza lhe oferece: a sensação e a imaginação.
Não consigo exagerar a importância que estes conceitos tiveram para mim desde a primeira vez que os li, o choque da sua novidade e o modo como ficaram para sempre comigo. A imaginação como uma forma de verdade. A sensação como um seu instrumento. A contemplação como um prazer em si mesmo, que não se esgota com a posse do objecto. Uma pessoa pode, como em tudo, ler isto de várias maneiras. Pode achar enfadonho, pode achar piada, pode até perceber e simpatizar. E depois pode ler, mesmo ler a sério, reflectir, interiorizar, deixar a marinar na alma. Depois disso a nossa vida muda. É uma epifania, uma revelação. É a descoberta do valor da emoção pela emoção, da meditação e da poesia.
Reflectindo sobre tudo isto, apercebi-me mais tarde que é a imaginação que distingue o Homem dos animais. É a capacidade de usufruir conscientemente das suas sensações e de meditar sobre elas que nos torna especiais. Não são as faculdades de nos organizarmos, de trabalharmos em conjunto, de cooperarmos, até de comunicarmos ou de vivermos em sociedade. Isso são os meios indispensáveis para vivermos, que devem o melhor possível ordenados, para serem depois o mais rapidamente possível esquecidos. São os meios, não o fim. Também as abelhas, as formigas e os pássaros se organizam em sociedade e têm códigos e instintos de actuação para situações específicas. Também os leões têm hierarquias e os elefantes uma espécie de noção de comunidade. O que distingue o Homem é o ser sozinho, ou o também poder ser sozinho. O poder ver a lua no céu à noite e perceber, de si para si, sentindo, imaginando e meditando, que assiste a uma coisa bela. É o ter consciência desse sentimento, o saber nomeá-lo. Para mim isto é pelo menos parte da verdade, pelo menos parte da razão por que estamos cá. Para sentir o mais possível, o melhor possível. Para aprendermos desse modo a saber as coisas por dentro, em nós, e não apenas a sabermos o que são ou para que servem. É para abrimos os olhos e aprendermos, não tanto a ver, mas a olhar. Porque o que se vê, é sempre o mesmo. O que muda não é o objecto, o que importa não é o objecto. É que só se aprende a ver quando se aprende a olhar. É o olhar que importa.
Repito as lições de Keats: a imaginação como uma forma de verdade, a sensação como um seu instrumento, a contemplação como um prazer em si mesmo, que não se esgota com a posse do objecto.
Repito as lições de Keats: a imaginação como uma forma de verdade, a sensação como um seu instrumento, a contemplação como um prazer em si mesmo, que não se esgota com a posse do objecto.
Porque Keats percebeu o que Pessoa nunca conseguiu: que o Homem não pode decifrar o mistério. O Homem habitará sempre em, viverá sempre com, e finalmente morrerá sempre na presença da Dúvida, a eterna dúvida, a tormentosa dúvida. Ninguém sabe porque estamos aqui, de onde viemos, para onde vamos. Ninguém. O mistério é indecifrável. O que Keats nos ensina - e é tão incalculavelmente precioso, tão transcendentalmente importante que o saibamos - é a perguntarmo-nos isto: Porque te inquietas e preocupas? Porque tens dúvidas e incertezas? Porque tens de querer saber? Porque tens de querer explicar? Será que não vês a beleza disto tudo, o romantismo do mistério, a atração do insondável? Imagina, sente e contempla a beleza disto tudo tal e qual como é, sem explicações, sem sofrimento. Aprende a aceitar o mistério, a viver com ele, a regozijar-te nele: toda a verdade do mundo está nisto e encontrarás nas tuas sensações mais verdade que em todas as ciências.
Keats deu um nome a esta capacidade do Homem para aceitar a dúvida e a incerteza: Negative Capability, a Capacidade Negativa. Capacidade de não buscar para tudo a explicação dos factos e da razão, ou muito simplesmente, de não buscar para tudo uma explicação.
Quando morreu tuberculoso, novíssimo, pobre, sonhador, Keats era apenas um poeta reconhecido entre os seus amigos próximos e uma franja minoritária de intelectuais ingleses. Ao longo do tempo, à medida que os seus originais dispersos e a sua obra epistolográfica se foram tornando conhecidas, a sua reputação foi crescendo. Todo o movimento oitocentista finiessecular da arte pela arte - o esteticismo - viu nele o seu santo patrono, o seu mártir sagrado. Oscar Wilde adorava-o acima de qualquer outro poeta, à excepção talvez de Shakespeare. Para todos os poetas que escrevem em lingua inglesa John Keats é sinónimo de Romantismo, e o seu nome está provavelmente elevado acima de qualquer outro desse período de grandes entre os grandes poetas. A sua poesia é sinónimo de Beleza, a sua vida de Verdade. Viveu e morreu pela causa da poesia. Hoje é imortal.
After dark vapours have opressed our plains
After dark vapours have opressed our plains
For a long, dreary season, comes a day
Born of the gentle South, and clears away
From the sick heavens all unseemly stains.
The anxious mounth, relieving from its pains,
Takes as a long-lost right the feel of May,
The eyelids with the passing coolness play,
Like rose leaves with the drip of summer rains.
And calmest thoughts come round us - as of leaves
Budding - fruit ripening in stillness - autumn suns
Smiling at eve upon the quiet sheaves -
Sweet Sappho's cheek - a sleeping infant's breath -
The gradual sand that through an hour- glass runs-
A woodland rivulet - a Poet's death.
Depois que negras nuvens oprimiram nossos prados
Depois que negras nuvens oprimiram nossos prados
Durante uma longa, uma seca estação, um dia chega
Nascido do sul gentil, e que p'ra longe leva
Dos céus adoentados, todos os resíduos indesejados.
Aliviado de tormentos, desponta o mês feliz
No sentimento de Maio, como num direito esquecido,
E na brisa que passa vão as pestanas brincando,
Como botões de rosa com as gotas de chuvas veranis.
E benignos pensamentos nos acercam - como folhas
Germinando - frutos em silêncio amadurecendo- sóis
Outonais sorrindo de véspera para faunas tranquilas-
De Safo a doce bochecha - um bebé que dorme nos lençóis -
A areia que corre, deslizando a passo na ampulheta-
Um rio por entre a selva, a morte de um Poeta.
Pretendo escrever em breve um pouco mais sobre Keats, ou pelo menos traduzir algumas das suas cartas e alguns dos seus poemas, tal como fiz com este poema, o meu soneto de Keats preferido. Espero ter captado o interesse dos meus leitores para os artigos que se seguem. A imagem deste artigo é da mascára mortuária do poeta, realizada pouco tempo depois da sua morte, no dia 23 de Fevereiro de 1821, distante de nós 189 anos daqui a cerca de um mês.
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
Delírios Alegres

A tentação mais imediata de compará-lo com D. Quixote, "o cavaleiro da triste figura", à qual, como podem comprovar, não consegui resistir, é, na verdade, sumamente injusta. Para o Don, claro está. E falo a sério. Dizer de alguém que é "quixotesco" significa na prática da linguagem socialmente adoptada passar-lhe um atestado de estupidez ou insanidade. É o último argumento quando se trata de arrasar as potencialidades de um estadista ou aspirante a estadista, e, se o símile for particularmente bem conseguido e se se aplicar de modo incisivo e certeiro à pessoa a quem é dirigido, o seu efeito sobre a opinião pública pode ser devastador e até definitivo, isto é, definitivamente fatal. Mas eu não me conformo, não me posso conformar, com o viciado uso em que caiu essa palavra. Considero que o apodo de "quixotesco" pode muito bem ser um belo elogio, e vejo mesmo na figura do cavaleiro galgando em aventuras e sonhos as estéreis planícies de Espanha, acompanhado apenas da sua pobre pileca e do seu escudeiro fiel, algo de eminentemente sagrado.
D. Quixote é nobre, orgulhoso, caridoso, bom. Busca com toda a ingenuidade da sua alma um padrão de justiça mais elevado e um qualquer sentido de transcendência num mundo despido de significação divina e abandonado a uma materialidade bestializante. Não estando disposto a aceitar a realidade do mundo em que vive, D. Quixote é, muito simplesmente, alguém que ousou sonhar novos mundos, para ser no final, inevitavelmente derrotado por este. Porém, de um modo singular, nunca o foi inteiramente, pois o mero facto de sonhar, de pretender reavivar na sua época descarnada e sem-história o ideal melancólico da cavalaria andante, tornou-o num símbolo, o símbolo de todos aqueles que buscam um qualquer ideal melancólico, para além de todas as épocas descarnadas e sem-história.
Mas Alegre não é um sonhador, não é um heróico lutador das causas da justiça e da bondade, o ingénuo adepto de um mundo melhor, cujo erro trágico, como em Quixote, seja o de acreditar em demansia na ficção que criou, enredando-se nela a ponto de não ser capaz de a discernir da realidade real (desculpem-me o pleonasmo, mas preciso do tom enérgico) do mundo em que vive. Não, nada disso. Manuel Alegre é apenas um vulgar charlatão, um pavão emplumado, um enorme presumido, um vaidoso perigoso que coloca, acima de todo e qualquer valor, acima de todo e qualquer ideal, a desmesura triste da sua ambição triste. Coloca-a até acima do sentido de ridículo, que manifestamente não possui.
A imagem que o define correctamente é a de Narciso, não a do Quixote. Apaixonado apenas por si próprio e, mais do que tudo, pela imagem de si próprio, trabalha com afinco e de modo hábil a sua pose, de modo a alimentar conscientemente o lado bom do mito quixotesco, que as pessoas sentem, apesar de não verbalizarem. Tudo o que Alegre deseja é apenas e tão só projetar-se, glorificar-se, cumprir-se de acordo com essa imagem que de si próprio constrói: a da um novo salvador, um novo messias, em suma, a de um Salzar da esquerda portuguesa, órfã de um tonitruante e tacanho paladino. Mas um Salazar ao contrário, obcecado não com as contas públicas (tudo menos isso!), mas com a tirania dos valores humanistas: portuguesas e portugueses, sejam humanistas pobres, mas honrados! Manuel Alegre não se candidata à Presidência da República para projetar, trazer glória ou cumprir um ideal que considere superior. O ideal é ele próprio. É, como Narciso, cego a tudo o que não ele mesmo, e não creio incorrer em grande risco de erro ao aventar a plausível hipótese de que, como Narciso, se afogará com o encantamento do seu reflexo. Todo aqule inchaço ideológico e moral é um balão cheio de ar. Um alfinete de realismo, competência e seriedade... e aquilo rebenta.
Como não possui quaisquer competências específicas que o distingam para o cargo que pretende ocupar, e, mais do que isso, sabe-o melhor que ninguém, dedica-se alegremente a delirar novas prioridades nacionais. Porque ele não está cá para servir o país, o país é que está cá para o servir a ele. A ele, o poeta, o profeta, o incorruptível e o puro. O agregador dos valores da esquerda. O único Homem em todo o Portugal, em toda a Península Asiática que é a Europa, em todo o largo perímetro do vasto Mundo que se preocupa com as causas da justiça e com a opressão dos valores do humanismo e solidariedade, vergados sob o peso mesquinho das obcessões do déficit e das estreitezas tecnocráticas. É a velha máxima dos bárbaros que o poeta retoma em pleno século XXI: o que não compreendes, destrói.
Porque, ao contrário do "tecnocrata", do obcecado, do estreiro, do inculto, do filisteu que é aquela besta do Cavaco (hum... filisteu ainda vá...), que Alegre tem a fineza de atacar sem nomear, o tonitruante bardo não suja as suas alvas mãos de esfinge na imunda discussão sobre dinheiro, essa coisa porca, inventada exclusivamente para a distração dos homens menores.
Para Alegre, o déficit não é um problema, o país não está endividado, não há desemprego em Portugal, as contas públicas estão todas em ordem, as nossas empresas funcionam e produzem às mil maravilhas, as empresas estranjeiras funcionam e produzem cá que é um fartote e a nossa balança de pagamentos não podia estar melhor. Tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis.
Para Alegre, tudo vai bem quando a base da economia de um país é o funcionalismo público que as pessoas pagam mais de quarenta por cento de imposto sobre o rendimento para manter. Um país em que o poder de compra e o nível médio de vida descem todos os dias. Nada de economias, os problemas são outros.
Basta apenas, à maneira da avestruz, enfiar a cabeça num buraco na areia, que as coisas resolvem-se por si. Basta apenas, à maneira dos cineastas portugueses, pedir subsídios, que os filmes fazem-se sozinhos... desde que não tenham imagens... para a canalha que paga impostos e subsidia a malta, já bem basta um ecrã preto. Tudo vai assim muito bem para Alegre, ele que não é um limitado, um tecnocrata, um escravo do déficit. Ele que preza o humanismo e os valores humanistas. Para ele, o grande Homem, o grande visionário, o problema é fácil de ver, fácil de resolver: faltam valores humanistas, venham daí mais valores humanistas!
Com valores humanistas vamos todos lá rapaziada, não precisam de estudar mais, de suar mais, de poupar mais... basta um pouco de lamechice, uma pose altiva, uma voz das profundezas do Bussaco, uma retórica pedante, umas tiradas ocas, uns jantares com os esquerdalhos que citam expressões francesas e dirigem cinematecas, e pronto... o Belmiro, esse labrego, pode ir dinamizar empresas e criar empregos para o Brasil, que nós não precisamos cá disso. Nós não vergamos o poético espinhaço ao fascismo da economia, nunca vergaremos o espinhaço a qualquer norma ou lei racional. Nós vergamos apenas o nosso esquerdalho espinhaço ao camarada Alegre e aos seus valores humanistas.
Compreendo. E não estranho. Para o camarada Alegre, que nunca produziu nada, a não ser meia dúzia de discursos empolados e versos de uma vacuidade assustadora, estas coisas não importam.
James Madison escreveu nos Federalist Papers que se os homens fossem anjos não haveria necessidade de governo. E que, portanto, num mundo perfeito, um governo perfeito seria muito simplesmente aquele que não existisse. Imaginemos por um momento que amanhã, por capricho divino, os homens se tranformavam em anjos e que o governo, por desnecessário, desaparecia.
Observemos e comparemos dois casos distintos e perguntemos: o que fariam então o tecnocrata e o Narciso? Imagino que o primeiro regressa calmamente à sua vida profissional, onde é reconhecidamente competente e benquisto, e leva uma vida confortável e próspera, muito justamente gozando de uma boa-reputação generalizada e de uma estabilidade financeira que atestam a natureza do seu mérito, aplicação, inteligência e esforço, e surjem como um fruto natural destas qualidades. E o que faria o nosso conscencioso versejador? Ensinar literatura numa Universidade, num liceu? Mas quem será o iludido português ou portuguesa que, em boa consciência, genuinamente acredite que o homem pode soltar, ainda que muito espremido, um pingo de boa literatura ou de boa teoria literária? Digam-se quem é essa portuguesa ou português, que eu comprometo-me, pessoalmente e de bom grado, a costear à infeliz criatura os encargos da instrução primária. Ainda assim, é bem possível que, de entre a trupe de intelectuais que vai parasitando à sua volta, algum dos seus amigos politiqueiros lhe arranje um tacho numa editora ou numa faculdade (pública, é claro!). O amigalhaços, afinal, são para isto mesmo. Mas, e se os amigalhaços todos estiverem sem tachos na cozinha? Onde é que o nosso bardo passar a fazer os seus pantagruélicos cozidos à portuguesa ou os seus bacalhaus à brás de raça pura, importados directamente da Noruega? Na fornalha dos seus versos, passando a ganhar o pão com os seus poemas? E quem será essoutro iludido português ou portuguesa que, em boa consciência, genuinamente acredite que o homem é, na plena acepção da palavra, um poeta, e não um versejador enfatuado e menor? Temo bem que, a haver um assim tão trágico concidadão pátrio... bem, para esse toda a esperança é vã, já está para lá de toda e qualquer possibilidade de redenção, e o nosso dever é lamentá-lo. Mas se assim fosse, se o "poeta" tivesse de ganhar o pão os seus versos, creio que não lhe prestaria um mau serviço quem o iniciasse nos segredos e subtilezas do marisco do Eusébio, essa pérola dos verdadeiros poetas, que sempre sai mais em conta.
Em qualquer dos casos seria bem interessante imaginar então o grande Homem, o grilo falante da consciência portuguesa, aquele que não mancha a sua alma impoluta com as baixezas do deficit e outras que tais, recostado numa cadeira de balouço num recanto escondido da sua isbá, agachado e encolhido sobre uma modesta secretária de madeira, de pantufa felpeluda e gorro à pai natal; nos olhos espantados, esbugalhados e palermas a incredulidade humilhante de estar lendo, derrotado, à luz das velas gastas (a eletricidade anda cara ...), uma sebenta reles de lições reles da ciência reles da economia. Para ver se aprende, com os mentecaptos da tecnocracia, a gerir melhor o pataco, essa coisa reles... quando é dos outros!
É que, como ensina Milton Friedman (outro tecnocrata monomaníaco e limitado), há quatro maneiras muito distintas de gastar o pataco:
1) Gastar o pataco próprio consigo próprio: importa quanto gastamos e como gastamos. Economiza-se e valoriza-se o pataco.
«Assim tá bem, mas vou contar tostões... e vou esmifrar esta porcaria... a mim ninguém me engana! Não me apanham em burlas e engodos! Vou gastar bem o meu pataco, tudo do bom e do melhor, mas o mais barato possível, claro!»
2) Gastar o pataco próprio com outras pessoas: importa quanto gastamos mas não como gastamos. Economiza-se, mas não se valoriza o pataco.
«Epá, tenho mesmo de comprar um presente ao Luís Tinoco, que o gajo faz anos. É um frete do caraças, mas tem mesmo de ser! Mas um gajo não é parvo. Um gajo escolhe aí uma merda barata qualquer, mas que tenha bom aspeto, e tá safo, ninguém nota!... Ainda por cima o cabrão nem sequer foi aos meus anos, disse que tava doente e não-sei-quê, e depois nem me deu nada... Filho da puta! Levo-lhe aqui esta porcaria e já vai com muita sorte.»
3) Gastar o pataco de outras pessoas em si próprio: não importa quanto gastamos mas sim como gastamos. Não se economiza, mas valoriza-se o pataco.
3) Gastar o pataco de outras pessoas em si próprio: não importa quanto gastamos mas sim como gastamos. Não se economiza, mas valoriza-se o pataco.
«Olha, hoje o patrão oferece aqui o almoço à malta! Cabrão! Esperaí quieu já te fodo... Levas aqui com uma sapateira e um arroz de marisco que até cais pró lado. Palhaço. Vou pedir aí uma vinhaça como deve ser e no fim, ai caraças!, levas na tromba com um uísque tão velho que até te vão cair os tomates! Ca ganda toni pá... o palerma até vai apanhar um enfarte quando vir a conta...»
4) Gastar o pataco de outras pessoas com outras pessoas: não importa quanto gastamos nem como gastamos. Não economizes nem valorizes o pataco, a malta paga os impostos!
Somos o Pateta Alegre. Em suma, estamo-nos mais é a marimbar pró pataco da malta. A malta que se lixe. A malta tem é de ir votar aqui no Pateta prá presidência e "mai nada". Aqueles tansos lá amiguinhos do Cavaco, que são uns caretas, uns Velhos do Restelo, que preguem o miserabilismo. Comigo é tudo à Lagardère. A malta quer é borga, qual apertar o cinto! Quando se acabar o pataco arranja-se mais. Ou cai das árvores ou aumenta-se os impostos, tanto faz! Ou então manda-se vir da Alemanha, os nazis de merda que paguem esta treta. Entretanto fazemos aí uns estádios novos, todos construídos de raiz pra organizarmos aí um Europeu feminino ou uma merda do género, que é pra promover a igualdade... Quando isto rebentar já a malta tá nas reformas a receber o pataco... e isto depois que se lixe, que há-de aparecer alguém que põe isto tudo na ordem. Entretanto um gajo já mamou e pronto, por mim está tudo bem.»
Gostava de terminar este post com um conselho para o nosso delirante e risível bardo. Não fale do dinheiro dos outros com desprezo. É o dinheiro dos outros que lhe paga o ordenado. É o dinheiro dos outros que o Estado rouba descaradamente em quase metade do que ganham, para, mais vergonhosamente ainda, contrair dívidas que não pode pagar e que irredimivelmente enlameiam o já quase irrecuperável bom-nome da nossa reputação internacional. O mínimo que pode fazer é estar maximamente calado. Perceber que é sua obrigação mínima, já que é assim que ganha o seu pataco, preocupar-se ao máximo em como gasta o nosso. Que é sua obrigação mínima, já que não sabe como se mexe em pataco, respeitar ao máximo aqueles que sabem, e não, como é seu timbre, ter-lhes inveja. Que é sua obrigação mínima, nem que seja com a humildade que ainda ninguém lhe ensinou que não tem, contribuir ao máximo para que, de futuro, o volume de pataco que sai à força do nosso para o vosso bolso, seja cada vez menor e não cada vez maior. É tirar a cabeça da areia, deixar de viver de reformas e subsídios, é não inventar novos problemas para tentar esconder o facto de que não sabe solucionar os velhos que ainda persistem. É, enfim, seguir o conselho de Madison e tornar-se perfeito, tornando-se... perfeitamente ausente.
Imagem: Milton Friedman, Prémio Nobel da Economia em 1976. O homem que sabe como se mexe em pataco.
Imagem da cima: Narciso, Caravaggio, 1588-89.
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
FORTISSIMO
Deus enfurece-se e sufoca de raiva
dorme ou está por certo morto -
homens, quem o acordará?
Mães, chorai mais forte:
sobressaltará um choro frágil
quem não despertam tantos canhões?
E não choreis lágrimas,
que as lágrimas só caem na terra,
chorai, gritando, contra o céu,
chorai sem piedade:
não docemente como a fonte,
não como a música da tempestade,
não como o velho Níobe:
mas como torrentes que transbordam
chorai, ou avalancha
que rola, chorai gelo
fogo chorai como a lava!
Os filhos queridos caem,
dia após dia, na neve, em sangue.
Não deixeis dormir ninguém:
quem hoje cala é malvado ou cobarde -
mas vale a pena ter medo?
e vale a pena viver?
Oh, porque não se ouvem nossas vozes?
Ide chorar para o mercado,
vociferai nas igrejas,
mulheres de selvagens, selvagens
tornadas em frenética, louca
oração!
E se não forem
choro e oração, nós homens,
sabemos ainda blasfemar! Doravante,
acreditamos valer a pena blasfemar
contra a grandeza adormecida no Destino.
Lancemos contra seu sono ruidosa
granizada de blasfémias!
Porque existe, se não existe? Porque não existe, se existe?
Reneguemo-lo, talvez acorde!
Sacudamo-lo, atinjamo-lo com palavras!
Qual patrão roncando na casa
em fogo, surdo é Deus!
Surdo! Surdo!...
Oh, que bom seria,
hoje, sermos surdos como Deus!
Surda a terra, que não sente nas costas
o marchar humilhante dos exércitos.
Seria melhor germinar surdamente
como bolbo de planta sobre a terra:
tudo é surdo, na terra, em Deus,
só o homem escapou do
Deus surdo para os horrores,
dele saiu a modo de verme,
verme de Deus, para um formigar
de comichões, para doer - porque
o que não é Deus é surdo e sofrimento,
até que de novo morre em Deus.
Fevereiro de 1917
Babits Mihály (1883 - 1941), in Antologia da Poesia Húngara, tradução de Ernesto Rodrigues.
Imagem: La Mitrailleuse, 1915, Christopher Wynne Nevinson.
domingo, 17 de janeiro de 2010
A Arte Matemática de Prokofiev
Não posso começar a escrever este artigo sem declarar previamente que não sou um grande conhecedor, nem (talvez por isso mesmo) um grande admirador de Prokofiev.
Estou certo de que um dia poderei vir a mudar de opinião, e muito provavelmente fá-lo-ei. Admiro porém, incondicionalmente, a mestria da sua Sinfonia Clássica, essa pérola em que pretendeu homenagear Haydn e Mozart e o espírito sinfónico da escola vienense, compondo com sucesso uma sinfonia aos estilo classissita mas com a linguagem dos tempos modernos. Mas, acrescentando a esta obra a celebérrima Dança dos Cavaleiros do seu não menos célebre bailado Romeu e Julieta, e algumas passagens mais populares de obras tão inevitáveis como Pedro e o Lobo, pouco mais da sua obra até há bem pouco tempo conhecia.
De entre os grandes compositores russos do século XX, aquele que indubitavelmente leva a minha preferência é o imortal Rachmaninov, cujos quatro concerto para piano se contam entre as obra-primas mais inspiradas, poderosos e arrebatadoras alguma vez escritas, seguido do espantoso Shostakovitch, um génio ainda muito mal conhecido e apreciado. Ao contrário de Prokofiev, a música de Rachmaninov foi sempre alvo de uma peculiar "maldição" que aflige alguns dos grandes compositores de sempre. É uma estranha maleita, e o facto é que eu sou um fervoroso incondicional da grande maioria dos compositores a quem essa temível "maldição" ataca. Alguns deles são, quanto a mim, muito simplesmente dos maiores artistas que jamais viveram.
Tomemos por exemplo o caso russo. Pensenmos em três mestres, três mestres cuja obra e reputação se encontram "manchadas" com a inanidade dessa estranha maleita: o extraordinário Rimsky-Korsakov, o sublime Tchaikovsky e, como ficou dito, o arrebatador Rachmaninov. A maldição? O facto de serem populares, de expressarem emoções demasiado fortes e de comporem - notem bem! - «melodias que ficam no ouvido» (a frase é de um crítico que a, com este exemplo, pretendia provar irrefutavelmente a qualidade musical pobre das áreas de Verdi)! Sem dúvida que esta estranha acusação cuspida por críticos cuja vocação deve estar mais relacionada com a mecânica, a agricultura, a contabilidade ou qualquer outra actividade igualmente tediosa e desinspirada, não deixa de ser, no mínimo, absurda. Mas, para grande parte da crítica, pegou mesmo. E, para alguma parte do público, ainda hoje se mantêm. Passo a cunhar esta perturbação mental de Síndroma de Verdi, pois o grande compositor italiano (que, só por curiosidade, também era agricultor) é indubitavelmente culpado de, ao longo de vários anos e em várias obras que duram ainda há mais anos, cometer com acentuada reincidência o crime infame e notório de compor músicas que todos podem assobiar.
É curioso também notar que a sensibilidade estética destes iluminados nunca se ofendeu grandemente com as demências experienciais que marcaram grande parte do movimento modernista da música dita erudita dos anos 50 do século passado. Entre estas verdadeiras obras-mestras da história da música, que certamente irão permanecer como um legado de excelência e admiração para gerações de melómanos, contam-se a realização de recitais com todo o tipo de entulho colocado sobre as cordas do piano (entre rebuçados e parafusos) para "modernizar" o som; a encenação de concertos em que os instrumentistas "tocavam experimentalmente" no instumento da orquestra que pior dominavam e, para Evereste da degenerescência e charlatanice, a "composição" de uma obra de quatro minutos e trinta e três segundos de puro... silêncio! A proeza é de um tal John Cage, americano de nascimento, palerma de temperamento. E o como reagiram esses exigentes críticos a estes prodígios da arte? Com loas, encorajamento e aplausos. O público é que era imbecil por não gostar de ouvir ruídos de rubuçados e parafusos, ou simplesmente por não gostar de ouvir apenas ruídos! Ou apenas silêncio! O público, essa besta, que tem a audácia de ir para um concerto com a expectativa burguesa de ouvir instrumentistas especializados a actuar nos instrumentos da sua formação! O público, essa súcia de filitinos, com a perpétua arrogância de ir a um concerto para ouvir música! O público, essa manada, que prefere uma simples e bela melodia a um complexo e sofisticado silêncio !
Korsakov, Tchaikovsky e Rachmaninov, foram sem dúvida, entre muitas outras coisas, grandes melodistas.
Korsakov, Tchaikovsky e Rachmaninov, foram sem dúvida, entre muitas outras coisas, grandes melodistas.
Prokofiev nem por isso. Mas tal não significa que a sua música seja marcada pela privilégio da anarquia sobre a ordem ou pela exaltação do silêncio sobre a melodia. Naturalmente nenhum compositor sério defende este tipo de preposições, e Prokofiev é um grande compositor. Um anti-romântico de vocação, de hábitos um conservador (falamos, convém lembrar, na época de uma ditadura comunista), nunca foi um melodista nato. Não porque não soubesse compor melodias generosas, frases belas, passagens encantadoras (provou o contrário em inúmeras obras), mas porque preferiu, por determinação teórica, por decisão estética consciente, não fazê-lo. E isto já merece todo o meu respeito e todo o meu interesse. Entende a música, não à maneira romântica wordsworthiana de «expressão de sentimentos poderosos», mas à maneira neo-hansliquiana de uma sucessão abstrata de sons. Edward Hanslick foi um famoso crítico vienense do século XIX cuja definição da música como "forma em movimento" se impôs ao longo do tempo como uma interessante e válida contribuição teórica. A música de Prokofiev é, quanto a mim, a demonstração mais perfeita que conheço desse enunciado (o que só atesta que, embora ponderosa, essa definição é manifestamente incompleta). A sua estrutura e contornos assentam por completo na convicção de que uma combinação de sequências abstratas de notas (melodias) são auto-significantes, isto é, que nada mais significam ou expressam para além de si próprias. Para Prokofiev um dó é só um dó, e dizer que uma sua composição possa expressar tristeza, melancolia ou alegria é tão fora de contexto como dizer que podemos admirar a beleza de uma equação matemática ou encontrar qualquer emoção estética numa jogada de xadrez.
Mas precisamente porque uma combinação matemática pode ter (para quem a entenda) beleza, porque uma jogada de xadrez pode ser esteticamente emocionante e porque "a forma em movimento" é capaz não só de mover como de comover (isto é, de despertar uma identificação empática cujo sentimento é eminentemente de ordem estética), que vos convido a ouvir o seu concerto para piano e orquestra n.º. 3 em Dó maior, opus 26.
Trata-se de uma obra em que está claramente presente essa noção matemática, anti-emotiva, anti-significante da arte musical. Esta deveria ser idealmente encarada, simplesmente, como um jogo de sons, uma combinação de elementos isolados, uma construção de padrões abstratos de forma. Mas, para lá do papel quadriculado dessas equações e do impessoal edifício dessa abstrata arquitectura formal, por vezes escondida, outras vezes à vista, sempre em movimento e sempre presente, está a tirania da beleza. A vibração inefável mas certa das acústicas no ar, geradoras de um co-movimento, uma comoção, uma transmissão física de alguma coisa entre quem toca e quem ouve, essa ciência com que a tirania da beleza, essa velha matrona, sem a qual nenhum artista, conscientemente ou inconscientemente, produz grande Arte, seduz ao longo de séculos os públicos. Mesmo aqueles dão consigo a assobiar displicentemente, com satisfação e com gosto, no mundo das emoções fortes, a harmoniosa melodia das áreas de Verdi ou dos bailados de Tchaikovsky.
Proponho-vos que ouçam as seguintes obras e interpretações:
- Do Concerto para para piano e orquestra n.º. 3 em Dó maior, opus 26:
1. Marta Argerich: interpretação sólida e enérgica. Um sopro de vitalidade e energia a colorir a neutralidade formalista da obra.
2. Serguei Prokofiev, o próprio!!! (mais uma pérola inestimável do youtube!): necessariamente uma interpretação clássica. É porém interessante constatar que não é tida como a referência indisputada, ou pelo menos, não o é acima de todas as outras (com os concertos para piano de Rachmaninov o caso é bastante mais flagrante, uma vez que é universalmente pacífico que o compositor era um intérprete não muito inspirado das suas próprias obras!).
3. Vladimir Ashkenazy: é um intérprete de repertório de pendor indiscutivelmente romântico. Mas o seu brilhantismo e virtuosismo maduro impõem-se com grande mestria sobre qualquer desafio. Uma interpretação muito "musical" (o contexto do artigo ilumina o aparente absurdo desta última frase).
- Sinfonia Clássica;
- Dança dos Cavaleiros.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
Do Asterisco
Amigo leitor, serve este breve post para esclarecer o porquê desse asterisco enigmático e solitário que podes observar aqui em baixo, quiteto e pendente, à espera que lhe atribuam significado.
O significado é simples: significa que é feriado no blogue e que, malogradamente, não terei por um dia o privilégio de escrever para o vasto mundo cibernético, que, enfim, não posso mimar em demasia. Paciência.
Resta-te a consolação (imagino que bem parca) de teres sempre, nessa hora triste, um asterisco amável e cortês que, quieto e pendente, te anuncia que nada mais esperes por hoje.
Saudações cordiais do vosso simpático e considerativo bloguista. E por hoje é tudo.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
O Jovem Estaline
Deixo à consideração do leitor alguns excertos do livro O Jovem Estaline de Simon Sebag Montefiore, que me dedico a ler, sempre que os vagares do ócio, que presentemente não abundam, me permitem essa benesse. Foi uma daqueles presentes de natal faz-de-conta-que-é-surpresa, ou seja, daqueles que como somos nós que escolhemos, geralmente gostamos. Com a devida vénia ao oferente e a mim próprio, pelo conjunto mérito no acerto da escolha, seguem-se três passagens que considero, por motivos diversos, particularmente interessantes ou curiosas:
1. Um olhar sobre o modo de vida revolucionário seguido de uma maneira muito sui generis de, na clandestinidade, exercer a igualdade para com os "camaradas" revolucionários:
«Clandestinamente, os revolucionários eram, sob uma fachada de puritanismo, sexualmente liberais. Casais de camaradas acabavam constantemente juntos, na febre do trabalho revolucionário.
Quando não se encontrava com os Alliluyevs, Soso [Estaline] estava novamente ao comando de Kamo e dos seus jovens acólitos sosoístas. Se pretendia que obedecessem a uma ordem rapidamente, dizia: «Vou cuspir agora - e, antes que o cuspo esteja seco, quero-vos de volta aqui!» (página 172).
2. Uma combinação surpreendente:
«Certo dia Estaline levantou-se cedo e saiu, sem uma palavra. Kandelaki apareceu pouco depois e esperou nervosamente pelo seu regresso.
- Adivinhas porque é que me levantei hoje tão cedo? - perguntou Estaline, radiante. - Arranjei trabalho no armazém da refinaria Rothschild. Vou ganhar 6 abaz por dia (1 rublo e 20 copeques).
A dinastia franco-alemã, que personificava o poder, o luxo e o cosmopolitismo do capitalismo internacional, não teria sentido a mesma satisfação que Estaline, mas nunca vieram a saber que tinham dado emprego àquele que viria a ser o supremo pontífice do marxismo internacional. Estaline desatou a rir e a cantarolar:
- Eu trabalho para os Rothschilds!
- Espero que de agora em diante os Rothschilds comecem a prosperar - gracejou Kandelaki.
Estaline não respondeu, mas compreenderam-se perfeitamente: faria tudo o que estivesse ao seu alcance para garantir a prosperidade dos Rothschilds.
(...)
Batumi gabava-se da sua população de 16 000 operários persas, turcos, gregos, georgianos, arménios e russos, dos quais perto de mil trabalhavam na refinaria controlada pela Companhia de Petróleos do Cáspio e do Mar Negro, propriedade do barão Eduard de Rothschild. Os operários, muitos dos quais eram crianças, viviam em circunstâncias miseráveis na Cidade do Petróleo, em azinhagas lamacentas, entre o fedor das fossas que transbordavam e os resíduos das refinarias. Muitos morriam com tifo. Mas os milionários de Batumi e os administradores estrangeiros, na sua maioria ingleses, imprimiam àquele lugar atrasado uma aura de boulevard à beira-mar, com grandes mansões brancas de estilo cubano, sumptuosos bordéis, um campo de críquete e um Clube Naval inglês.
(...)
No dia 4 de Janeiro de 1902, "ao regressar a casa vi o incêncio!", diz Kandelaki. Apareceu então Estaline, muito alegre e a gabar-se: "Homem, as tuas palavras tornaram-se verdade!" Na verdade os Rothschild haviam "prosperado" com a admissão de Estaline como empregado. "O meu armazém está a arder!"» (páginas 133-136).
3. Termino com uma pequena provocação:
«Um dia, um jovem padre da cidade de Tseva, entre Chiatura e a estação de Jirual, estava no bazar quando foi cumprimentado por um homem desconhecido. "Eu sou Koba [Estaline] de Gori", disse ele. "Não estou aqui para fazer compras. Tenho um assunto particular a tratar contigo." Chamando o padre Kasiane Gachechiladze à parte, Estaline disse ter conhecimento de que o padre possuía alguns burros e perguntou-lhe como podia traspor os montes até Chiatura, acrescentando: "Ninguém conhece esta área melhor do que tu."
O padre apercebeu-se de que o sinistro estranho sabia muito acerca dele e da sua jovem família. Também reparou que o atirador do Esquadrão de Batalha Vermelho local, assassino de polícias, estava de guarda à porta do bazar. "Não havia polícia em Tseva na altura - o Esquadrão Vermelho mandava lá." "Koba de Gori", claramente um líder Vermelho, solicitou educadamente a utilização dos burros do padre e ofereceu a considerável quantia de 50 rublos para traçar uma rota pelos montes. O dinheiro acalmou a ansiedade do padre.
Estaline insistiu em convidar o padre para uma bebida numa taberna local.
" Informar-te-ão anticipadamente de quando virei", disse antes de desaparecer. "Padre, não te atrases: quero fazer a viagem para lá e para cá num dia. Somos ambos homens novos."
Pouco depois o padre foi informado. Estaline regressou com dois capangas, que o ajudaram a carregar os burros com alforges contendo dinheiro, máquinas de impressão e, provavelmente, munições. Estaline sabia que os comboios para Chiatura eram frequentemente revistados, pelo que havia concluído que esta era a forma mais segura de alcançar a sua "fortaleza bolchevique".
O padre e o ex-seminarista [Estaline] conversavam enquanto caminhavam. Por vezes, debaixo de uma árvore. Estaline descansava a cabeça no joelho do padre, para fazer uma sesta. Durante a ditadura de Estaline, o padre Gachechiladze desejava ter assassinado o seu companheiro, mas, na altura, "ele impressionava toda a gente. Eu até gostava dele - era comedido, sério e decente. Até costumava recitar-me poesia", acrescentando que as composições eram de sua autoria. Ainda tinha orgulho de ser poeta.
"Alguns dos meus poemas foram até publicados nos jornais", gabou-se Estaline, que raramente falava de política, mas afirmava que "A polícia procura-me porque um amigo meu se envolveu numa luta em Chiatura por causa de uma rapariga - e eu apoiei-o." Mostrava o braço rígido como evidência desta luta (mais uma das suas versões). Estaline dizia as graças antes das refeições. "Vês, ainda me lembro", riu. Cantava enquanto andavam. "A música tem tanto poder para acalmar a alma!", reflectiu.
"Alguns dos meus poemas foram até publicados nos jornais", gabou-se Estaline, que raramente falava de política, mas afirmava que "A polícia procura-me porque um amigo meu se envolveu numa luta em Chiatura por causa de uma rapariga - e eu apoiei-o." Mostrava o braço rígido como evidência desta luta (mais uma das suas versões). Estaline dizia as graças antes das refeições. "Vês, ainda me lembro", riu. Cantava enquanto andavam. "A música tem tanto poder para acalmar a alma!", reflectiu.
Um camponês convidou o padre e o revolucionário para um banquete. Estaline, já tocado, cantou "com tal suavidade de veludo", que os camponeses queriam "casá-lo com a sua filha."
O padre elogiou-o:
- Terias dado um grande padre.» (páginas 187-189).
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
Sir Wiston: um arquitecto institucional
«Moldamos os nossos edifícios, e posteriormente os nossos edifícios moldam-nos a nós.»
Do Discurso Sobre a Reconstrução da Câmara dos Pares, destruída em 1941 por um bombardeamento aéreo alemão. Proferido na Câmara dos Lordes, a 28 de Outubro de 1943. A Câmara dos Pares encontra-se actualmente reconstruída, de acordo com os desejos de Churchill, na sua "dimensão original" e "sobre as suas velhas fundações".
Estátua de Churchill na Câmara dos Pares
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
Emily Sparks
«Where is my boy, my boy-
In what far part of the world?
The boy I loved best of all in the school?-
I, the teacher, the old maid, the virgin heart,
Who made them all my children
Did I know my boy aright,
Thinking of him as a spirit aflame,
Active, ever aspiring?
Oh, boy, for whom I prayed and prayed
In many a watchful hour at night,
Do you remember the letter I wrote you
Of the beautiful love of Christ?
And whether you have took it or not,
My boy, wherever you are,
Work for your soul's sake,
That all the clay of you, all the dross of you,
May yield to the fire of you,
Till the fire is nothing but light!...
Nothing but light!»
«Onde está o meu rapaz, o meu rapaz -
Em que longínqua parte do mundo?
O rapaz que mais amai entre todos na escola?-
Eu, a professora, a solteira velha, a virgem de coração,
Que fiz de todos eles meus filhos.
Terei conhecido bem o meu rapaz,
Supondo-o de espírito ardente,
Activo, aspiando sempre?
Ah, rapaz, por quem rezei e rezei
Em tantas horas de nocturna vigília,
Lembras-te da carta que te escrevi
Sobre o sublime amor de Cristo?
E, quer a tenhas ou não percebido,
Meu rapaz, onde quer que te encontres,
Trabalha pela salvação da tua alma,
Que todo o barro em ti, que todo o pior de ti
Possa ceder ao fogo que há em ti,
Até que o fogo seja nada senão luz!...
Nada senão luz!».
Spoon River Anthology, Edgar Lee Masters, 1915.
Tradução e sublinhado/itálico meus.
domingo, 10 de janeiro de 2010
O Homem dos Sete Instrumentos
António Vitorino d'Almeida é, muito provavelmente, o maior artista português vivo. A sua obra de compositor, muito às pinguinhas, começa lentamente a furar o dique de indiferença e snobismo que se ergueu à sua volta.
Porque é um comunicador de invulgar génio, cuja inventividade e talento narrativo conseguem prender o ouvinte do primeiro ao último segundo, supõe-se que não possa ser muito mais do que isso, e as suas incursões são muitas vezes acolhidas ou com um sorriso zombeteiro e pedante ou então com hostil indiferença. São os trejeitos cá da paróquia perante o que lhe é superior.
O epíteto jocoso de "homem dos sete instrumentos" com que tantas vezes é paternalizado pode muito bem ser, no fim de contas, uma amarga ironia, mais uma partida pregada pela arte à vida, e que funciona como um boomerang contra aqueles que procurando denegrir, saem eles próprios cada vez mais desacreditados.
António Vitorino d'Almeida, o grande orador, cujo magnetismo incomparável comunicou a gerações de portugueses, é também António Vitorino d'Almeida, o grande músico e o grande intérprete, aquele cujos dotes de imaginação, técnica e puro talento, que com superabundância possui, estão polivalentemente distribuídos. Senão vejamos: conseguiu ser, em diferentes períodos da sua vida e sempre com sucesso, compositor, pianista, maestro, divulgador cultural, escritor, realizador, professor e, porque não, diplomata.
Evidentemente que a sua prestação tem sido desigual nestes vários domínios. Mas o que o país começa tardiamente a perceber é que estamos perante um compositor genial, de calibre mundial. Essa será, suponho, a distinção máxima que sempre almejou. Está certamente no pódio dos grandes compositor portugueses de sempre, onde ombreia apenas com João Domingos Bomtempo e Joly Braga Santos, que são na minha opinião, juntamente com o nosso maestro, os nossos grandes.
No panorama internacional o seu lugar é, por vários motivos, bem mais incerto. A contribuição de Portugal para o engrandecimento da arte musical é, exceptuando Amália Rodrigues e mais alguns poucos nomes como os que referi, miserável. O handicap é um pouco menos que excelente.
Mas que é possível o milagre de se ser simultaneamente português e exímio no exigente exercício do virtuosismo em música clássica, provam-no intérpretes portugueses tão mundialmente afamados como foram e são Viana da Mota, Sequeira Costa ou Maria João Pires. António Vitorino d'Almeida ainda não é o compositor mundialmente reconhecido que certamente gostaria e que merece ser. É até possível que nunca venha a sê-lo. A fortuna póstuma é uma esfinge caprichosa e insondável e Portugal não é Tebas ou sequer Corinto. Um Édipo salvador é-nos geograficamente menos acessível e, mesmo na era da globalização, pelo pelos por enquanto, temos ainda de aprender a resignar-mo-nos a viver com a peste da obscuridade relativa.
Resta-nos ainda um grande consolo. Esse consolo é António Vitorino d'Almeida. Proponho-vos que escutem, para começar, o seu concerto para piano e orquestra, op. 20 (clicar aqui para ver a segunda parte) e que explorem livremente os restantes excertos do site.
Não tenho a pretensão de conhecer a música de todos os principais compositores vivos da actualidade, ou sequer da maioria deles, já para não falar dos mortos. Tenho porém, apesar desta manifesta impossibilidade, uma forte suspeita. Quantos compositores haverá em todo o mundo que, agora como ontem, não se sintam ou sentiriam pelo menos envaidecidos de poderem afirmar terem composto uma obra como esta?
Porque é um comunicador de invulgar génio, cuja inventividade e talento narrativo conseguem prender o ouvinte do primeiro ao último segundo, supõe-se que não possa ser muito mais do que isso, e as suas incursões são muitas vezes acolhidas ou com um sorriso zombeteiro e pedante ou então com hostil indiferença. São os trejeitos cá da paróquia perante o que lhe é superior.
O epíteto jocoso de "homem dos sete instrumentos" com que tantas vezes é paternalizado pode muito bem ser, no fim de contas, uma amarga ironia, mais uma partida pregada pela arte à vida, e que funciona como um boomerang contra aqueles que procurando denegrir, saem eles próprios cada vez mais desacreditados.
António Vitorino d'Almeida, o grande orador, cujo magnetismo incomparável comunicou a gerações de portugueses, é também António Vitorino d'Almeida, o grande músico e o grande intérprete, aquele cujos dotes de imaginação, técnica e puro talento, que com superabundância possui, estão polivalentemente distribuídos. Senão vejamos: conseguiu ser, em diferentes períodos da sua vida e sempre com sucesso, compositor, pianista, maestro, divulgador cultural, escritor, realizador, professor e, porque não, diplomata.
Evidentemente que a sua prestação tem sido desigual nestes vários domínios. Mas o que o país começa tardiamente a perceber é que estamos perante um compositor genial, de calibre mundial. Essa será, suponho, a distinção máxima que sempre almejou. Está certamente no pódio dos grandes compositor portugueses de sempre, onde ombreia apenas com João Domingos Bomtempo e Joly Braga Santos, que são na minha opinião, juntamente com o nosso maestro, os nossos grandes.
No panorama internacional o seu lugar é, por vários motivos, bem mais incerto. A contribuição de Portugal para o engrandecimento da arte musical é, exceptuando Amália Rodrigues e mais alguns poucos nomes como os que referi, miserável. O handicap é um pouco menos que excelente.
Mas que é possível o milagre de se ser simultaneamente português e exímio no exigente exercício do virtuosismo em música clássica, provam-no intérpretes portugueses tão mundialmente afamados como foram e são Viana da Mota, Sequeira Costa ou Maria João Pires. António Vitorino d'Almeida ainda não é o compositor mundialmente reconhecido que certamente gostaria e que merece ser. É até possível que nunca venha a sê-lo. A fortuna póstuma é uma esfinge caprichosa e insondável e Portugal não é Tebas ou sequer Corinto. Um Édipo salvador é-nos geograficamente menos acessível e, mesmo na era da globalização, pelo pelos por enquanto, temos ainda de aprender a resignar-mo-nos a viver com a peste da obscuridade relativa.
Resta-nos ainda um grande consolo. Esse consolo é António Vitorino d'Almeida. Proponho-vos que escutem, para começar, o seu concerto para piano e orquestra, op. 20 (clicar aqui para ver a segunda parte) e que explorem livremente os restantes excertos do site.
Não tenho a pretensão de conhecer a música de todos os principais compositores vivos da actualidade, ou sequer da maioria deles, já para não falar dos mortos. Tenho porém, apesar desta manifesta impossibilidade, uma forte suspeita. Quantos compositores haverá em todo o mundo que, agora como ontem, não se sintam ou sentiriam pelo menos envaidecidos de poderem afirmar terem composto uma obra como esta?
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